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Os fantasmas da ocupação russa em Kharkiv

Os fantasmas da ocupação russa em Kharkiv

As autoridades ucranianas continuam a fazer o levantamento dos estragos da ocupação russa na província de Kharkiv: há valas comuns com centenas de corpos, relatos de tortura e um número crescente de civis desaparecidos. Para os habitantes de Balaklia, os fantasmas da ocupação perduram para lá da retirada das tropas

Tiago Carrasco, em Balaklia

Dois colchões rijos, uma sanita e um panfleto com a imagem de Cristo pendurada na parede: os únicos elementos da pequena cela da esquadra de polícia local de Balaklia, uma cidade de 27 mil habitantes, 100k a sudeste de Kharkiv, que esteve sob ocupação russa durante cinco meses até ter sido surpreendentemente liberada no passado dia 9 de Setembro, após uma ofensiva de três dias que acabou com o cerco e reconquista da povoação. Albina Strelec, bombeira de 29 anos, entra no calabouço sem hesitações, apesar de ter estado ali detida durante 16 dias pelas forças invasoras: “Ainda ouço gritos e sofro com as memórias terríveis do tempo que passei aqui”, afirma. “Fui sortuda o suficiente para não ser agredida, mas ouvi uma companheira a ser violada, testemunhei espancamentos e disparos de execuções”.

Albina diz ter sido aprisionada devido às suas convicções pró-ucranianas, que nunca deixou de expressar abertamente. Durante o interrogatório a que foi sujeita – em que lhe lançaram ameaças contra si e a sua família - insistiu que não mudaria a sua posição e, ao contrário de tantos outros, foi poupada: “Alguns dos guardas eram chechenos e ficaram admirados com a minha coragem. Disseram-me que muitos homens se tinham vergado ao interrogatório, mas que eu tinha sido firme. Largaram-me em território ucraniano”, diz a bombeira, mãe de uma menina de sete anos. Assim que Balaklia voltou ao controlo de Kiev, Albina regressou à sua casa e ao quartel: “Ainda vai levar algum tempo até apagarmos as marcas que esta anexação nos deixou “, desabafa.

Até porque, segundo o investigador da ONG Iniciativa de Média para os Direitos Humanos, Artur Prikhno, cerca de 20 civis da cidade não tiveram a sua sorte e desapareceram do mapa. As autoridades temem que possam estar entre os corpos não identificados nas valas comuns que têm sido encontradas na região, mas Viktor e Natalia Shapoval mantêm a esperança de que o seu único filho Andriy, de 28 anos, possa estar numa prisão russa ou do território anexado de Donbas.

“A 13 de Abril, dia do seu aniversário, saíu por volta das 14h para ir ajudar a avó de um amigo e nunca mais regressou”, diz Natalia, chorosa. “Três dias mais tarde, surgiu num vídeo do Instagram, gravado na esquadra da polícia, a admitir que era colaborador do exército ucraniano. Mas é mentira. Ele foi obrigado a dizer aquilo”. Os ocupantes revistaram depois a casa da família, apreendendo computadores e telemóveis.

Não há qualquer pista sobre o paradeiro do rapaz que, segundo os pais, não exercia qualquer atividade relacionada com a guerra – vendia jantes e pneus pela internet. Os investigadores confirmam que Shapoval não tem qualquer ligação ao exército ou à defesa territorial ucraniana. Um perfil que foge ao padrão daqueles sequestrados pelos russos: políticos, jornalistas, ativistas e outros líderes de comunidade. “ O objetivo é disseminar o medo, deixar as povoações sem líderes e passar a mensagem de que ninguém está a salvo”, diz Tetiana Pechonchyk, 39 anos, directora da organização de direitos humanos ZMINA. A instituição conta até ao momento 328 desaparecimentos forçados de civis, que se podem constituir crimes de guerra no processo que está a ser montado contra o regime de Vladimir Putin.

Balaklia tenta retomar a normalidade depois de quase meio ano sem eletricidade, comunicações e escassez de bens alimentares: os homens reparam os telhados e as fachadas dos edifícios destruídos enquanto os voluntários enchem carrinhas com comida para distribuir nas aldeias próximas. As pessoas deambulam pela povoação à procura de um lugar em que consigam ter o mínimo de rede para fazer chamadas. Ainda não há fármacos para a hipertensão e doenças cardíacas: “Nos meses de ocupação muitas pessoas ficaram com as suas doenças agravadas por falta de acesso a medicamentos”, diz Olga Viktorovna, farmacêutica de 60 anos. A entrada do hospital transformou-se num ponto de recolha de roupas em segunda mão.

Entretanto, o mercado abriu timidamente há uma semana. As primeiras bancas começam a vender queijo, salsichas, óleo, batatas, ovos e peixe fumado. Ainda não há pão fresco. “Os clientes ainda são poucos e levam apenas uma ou duas coisas porque não ganham ordenado há muito tempo”, diz Larissa D. (que, como quase todos em Balaklia, rejeita dar o apelido com medo de um “regresso dos russos”) 57 anos, vendedora de enchidos. A comerciante chora sempre que fala da liberação da cidade: “Eu fugi, nem estive aqui. Mas assim que soube que os nossos rapazes tinham ganho, voltei para os abraçar”. Nem todos partilham do seu regozijo. Para os mais velhos, principalmente, a questão da soberania é secundária: preocupam-se mais com a sua subsistência. Há pobreza séria.

Cerca de 100 moradores concentram-se junto do edifício do registo civil, segurando guarda-chuvas para se protegerem dos chuviscos insistentes. Estão a registar-se para receberem o apoio de 1185 grivnas (menos de 30 euros) atribuído pelos fundos públicos aos cidadãos que viveram sob ocupação. “É muito pouco”, desabafa Alexy Zanchenko, 37 anos, que tem a mãe, idosa, a seu cargo. “Isto vai tudo para comida e mal chega para uma semana”. Viktor R., 58 anos, afirma que ainda assim com os russos era pior: “Faziam distribuição alimentar na escola que ocuparam mas davam um saquinho com massa, farinha, óleo e pouco mais”, recorda. Essas ajudas podiam acarretar contrapartidas. “Pediram-me a fotocópia do passaporte e os meus dados pessoais. Fizeram isso também a vizinhos meus, maioritariamente homens. Achamos que estavam a preparar um futuro referendo na região ou a mobilização de alguns de nós para o exército deles”.

Vladimir Putin anunciou a 20 de Setembro a mobilização de 300 mil reservistas – número que pode chegar aos 1,2 milhões, segundo fontes do Kremlin contactadas pela publicação russa independente Medusa - para a guerra na Ucrânia, lançando desde então uma campanha que está a conduzir centenas de milhar de russos a saírem do país, ao mesmo tempo que ucranianos de territórios anexados estão a ser recrutados para combaterem contra os seus compatriotas. É o caso dos tártaros da Crimeia, minoria étnica massivamente anti-Kremlin, que formam 80% dos mobilizados na península anexada, ou dos habitantes das regiões de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia, ilegalmente anexados pela Rússia através de referendos manipulados, organizados no passado fim-de-semana.

Os planos para a zona de Kharkiv eram semelhantes mas as tropas ucranianas conseguiram nas últimas semanas recuperar um território de 6000km2, uma área maior que o Algarve. Em Balaklia, o último reduto dos russos era a Fábrica de Reparação Mecânica instalada na periferia da cidade, transformada na sua principal base. “Quando aqui cheguei a fábrica estava completamente destruída e havia corpos espalhados por todo o lado”, diz Vladimir K., 71 anos, director da mega-oficina hoje reduzida a escombros, que chegou a encontrar um soldado russo a dormir na cama da sua própria casa. “Alguns disfarçaram-se de civis e tentaram escapar mas quase todos foram interceptados”. O empresário, vestido com casaco militar, mãos sujas de óleo e cabelo empastado pelo suor libertado a tentar recuperar o negócio, percorre a arrecadação transformada em sala de tortura, as camaratas e a sala de comando, onde ainda existem mapas sobre as mesas. A letra “Z” está pintada em paredes e camiões. Nas paredes, posters com propaganda de Moscovo: “Se formos, eles vêm”, lê-se num deles, incuntindo nos soldados a ideia errada de que a Rússia está a travar uma guerra defensiva. No meio do aço retorçido e do betão fulminado, só o grande pinheiro de Natal ali colocado pouco antes do início da ofensiva resistiu.

Numa estrada secundária, a poucos quilómetros da fábrica, há três cadáveres a definhar: dois largados no asfalto, um dentro de uma carrinha carbonizada. São ucranianos, dinstinguíveis apenas pelos modelos das botas e dos capacetes em que as ossadas estão enfiadas.O odor é nauseabundo. No posto de controlo seguinte, um soldado é avisado sobre os restos mortais: “Não temos tempo para limpar os mortos enquanto estamos a proteger os vivos”, diz.

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