Frente Polisário: “Falta pressão por parte do Conselho de Segurança” da ONU
Com o referendo previsto para o Sara Ocidental em espera há cerca de 31 anos, a disputa do território entre Marrocos e a Frente Polisário mantém-se. Em entrevista ao Expresso, o novo representante da Frente Polisário em Portugal defende que a comunidade internacional há décadas que “olha para o outro lado”. Omar Mih explica também que Portugal pode fazer uso do papel que teve no processo de independência de Timor-Leste para apoiar o Sara Ocidental
Há cerca de 31 anos as Nações Unidas constituíram a MINURSO, uma missão para a realização de um referendo no Sara Ocidental, antiga colónia espanhola em África. Desde então que o referendo continua por concretizar-se. O território administrado por Espanha até 1976 é disputado entre Marrocos e a Frente Polisário, o movimento de independência reconhecido pela comunidade internacional como legítimo representante do povo sarauí.
Soube-se em Julho que o ministro dos Negócios Estrangeiros português, João Gomes Cravinho, convidou o enviado das Nações Unidas (ONU) para o Sara Ocidental, Staffan de Mistura, para um encontro em Portugal, tendo adiantado à Lusa que provavelmente seria “a seguir às férias de verão”.
Em entrevista ao Expresso, o novo representante da Frente Polisário em Portugal, apela a mais esforços para uma solução.
Em março, Espanha mudou de posição em relação ao Sara Ocidental e disse que apoia o plano de Marrocos. O que acha que levou a esta mudança? Espanha é a potência administradora do território do Sara Ocidental do ponto de vista jurídico, Marrocos é a potência ocupante. Espanha tem uma responsabilidade jurídica que não terminará até que o povo do Sara Ocidental se exprima através de um referendo e se faça uma descolonização normal como pretende a ONU. Tem também uma responsabilidade política e humana, porque é a causa do conflito. Foram-se embora, abandonaram-no e a mando de dois países vizinhos a 14 de novembro de 1975, Madrid dividiu o território do Sara. Essa posição, que é a primeira traição de Espanha ao povo do Sara Ocidental, não foi aceite pela ONU e muito menos pelo povo sarauí, que continuou a sua resistência.
Os governos democráticos em Espanha nos últimos 40 anos tiveram a posição de que o conflito deve resolver-se através do exercício do povo sarauí. Pedro Sanchez mudou [esta posição]. Porquê? É incrível, ninguém sabe. Por chantagem, de certeza, Marrocos é um país especialista em chantagem e está a fazê-lo: emigração, terrorismo, etc. Mas não se compreende. Em três ocasiões o Parlamento rejeitou essa nova posição. Inclusivamente dentro do seu partido há muitíssimos militantes do PSOE que são solidários com a causa do povo sarauí. A posição de Pedro Sanchéz, escrita numa carta publicada pelos marroquinos – o que também é um gesto incrível – é uma mensagem perigosa e não vai ajudar à solução do conflito do Sara Ocidental. Dá a Marrocos o pensamento de que Espanha já lhe deu o Sara. É uma mensagem errónea que é também para todos os povos da região. Não entra na cabeça de muitos em Espanha porque é que o governo tomou essa posição. Em troca de quê? Se falamos dos interesses do gás, da estabilidade, da migração, quem ganha?
Esta posição põe em risco a possibilidade de se realizar o referendo? Não, não muda nada. É muito claro na ONU que o conflito do Sara Ocidental é de descolonização, é um território não autónomo, o seu povo tem direito à auto-determinação, tem um enviado, uma missão. Mas complica-se a procura que a ONU está a fazer [por uma solução] e o trabalho do enviado pessoal Staffan de Mistura para o Sara. Espanha diz que o projeto de autonomia [apresentado por Marrocos] é o mais sério e mais credível. De onde retira isto? Cria mais instabilidade na região e não sei se o está a ver.
O que é que a Frente Polisário considera que levaria Marrocos a aceitar a realização de um referendo? Marrocos aceitou connosco a ideia e o plano de paz que prevê o referendo da autodeterminação, nos anos 90.
Mas ainda não aconteceu… Creio que é a solução mais democrática, porque é a solução intermédia. Marrocos diz que o Sara é deles, nós dizemos para dar a possibilidade de se expressar num referendo. E aqui entra o papel que Portugal pode desempenhar. Tem experiência, fê-lo em Timor e pode fazê-lo também para o Sara Ocidental. Portugal e os sarauís são unidos não apenas pela geografia, dado que somos vizinhos, mas pela História e pela economia. Não há países pequenos ou grandes, há países com grandes valores. Portugal teve uma experiência extraordinária em ajudar à solução, mas isso não pode ser uma exceção. Em segundo lugar, o secretário-geral [da ONU] é de Portugal. Recordo-me que em 2015, Guterres era o presidente do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados e foi visitar os sarauís. Num almoço oferecido aos dirigentes sarauís disse-nos não ter uma solução humanitária para um problema político. Agora tem essa possibilidade.
O que está a faltar que pode ser feito para ajudar à resolução do conflito? Falta pressão por parte do Conselho de Segurança da ONU, que tem de assumir a responsabilidade. Este é um problema que durou muito tempo. É preciso investir na procura de uma solução porque se não existir há o perigo de a guerra que atualmente existe no Sara Ocidental se alargar. E não afeta apenas os povos da região e o povo sarauí.
O que gostava que resultasse da vinda de Staffan de Mistura? De momento Staffan de Mistura está de visita nos acampamentos, vai à Argélia e depois à Mauritânia. Nós dizemos que ele é o enviado para o Sara Ocidental mas ainda não chegou lá. Consideramos que é o enviado do Magreb. Para ser efetivamente o enviado do Sara Ocidental tem de visitar o território, encontrar os sarauí. De Mistura é uma pessoa competente, inteligente, é correto - não é corrupto - é verdade que não teve grandes êxitos nas suas missões mas... Para que De Mistura possa levar a término a sua missão, precisa de um apoio claro e forte dos Estados Unidos e da União Europeia.
“Estamos disponíveis a colaborar com as Nações Unidas para aplicar a sua solução, mas também para continuar a nossa batalha militar até que se respeitem os nossos direitos”.
Em 2020 a administração de Trump reconheceu a soberania de Marrocos sob o Sara Ocidental… Isso foi Trump num tweet. Biden não seguiu esse tweet.
Mas também não reverteu a decisão. A mensagem de Trump é ilegal, não pode dar algo que não lhe pertence. O importante é que atualmente a administração americana apoia que a solução do conflito do Sara Ocidental se tem de resolver no quadro das Nações Unidas. Tem de haver um acordo entre as duas partes e esse acordo tem de garantir o direito à autodeterminação do povo do Sara Ocidental. Têm de assumir mais responsabilidade em ajudar-nos.
Em 2020, a Frente Polisário anunciou o fim do cessar-fogo. As hostilidades têm-se mantido de baixa intensidade. O que esperam atingir no terreno?
Em Novembro de 2020 não foi a Frente Polisário que quebrou o cessar-fogo. Havia grandes manifestações pacíficas no sul do Sara Ocidental contra a exploração dos seus recursos naturais. Marrocos agrediu esses manifestantes pacíficos, violou os acordos militares, construiu outro muro e assim terminou o cessar-fogo. A Polisário foi obrigada a responder e daí que atualmente exista uma guerra em todo o território do Sara Ocidental. É verdade que se trata de uma guerra de baixa intensidade, mas existe.
Há alguma hipótese de se voltar a um cessar-fogo num curto espaço de tempo? A guerra vai continuar enquanto Marrocos não se sentar à mesa das negociações, a ONU marcar uma data para a realização do referendo ou haver indicações claras da aplicação dos acordos que acordámos em 1991. Até que chegue esse momento a guerra continuará. Esperámos 30 anos, fomos a todo o lado negociar, fazer concessões, fizemos o impossível. Estamos disponíveis a colaborar com as Nações Unidas para aplicar a sua solução, mas também para continuar a nossa batalha militar até que se respeitem os nossos direitos. Isso está muito claro e foi novamente transmitido ao enviado pessoal do secretário-geral.
Num contexto de guerra na Europa, em que se fala da autodeterminação dos povos, esperavam mais sensibilidade para a questão do Sara Ocidental? Não podem ser dois pesos e duas medidas. Há que aplicar a legalidade no Sara Ocidental. Sabemos que a atenção vai ser sobre outro, mas vejam que há também um conflito que dura há 30 anos a dois passos de Portugal e há que resolvê-lo. Portugal pode ajudar.
Quais são as condições nos campos de refugiados de Tindouf? Os refugiados vivem há quase 50 anos, desde 1975, maioritariamente de ajuda humanitária internacional. São os refugiados mais organizados do mundo. Nesse espaço que a Argélia nos deu, os sarauís quiseram construir o modelo de Estado que querem quando voltarem à sua terra. Construíram escolas, hospitais, o ensino é gratuito. Foram as mulheres sarauís que reafirmaram e construíram toda essa vida. Em 1975, Marrocos e os seus amigos queriam eliminar o povo do Sara Ocidental e os sarauís começaram a organizar-se, a resistir, a ensinar, a construir uma vida normal, sempre com o pensamento de que estávamos lá de forma passageira.
A nossa terra é o Sara Ocidental e temos de regressar. Ppassaram muito anos, há desilusão, mas há sempre determinação de que sofremos uma injustiça e queremos regressar à nossa terra. Queremos regressar em liberdade, com a cabeça erguida e o conflito resolvido. Não escondo que há dificuldades. Os sarauís e os acampamentos fizeram grandes investimentos na educação, temos gerações que vão para fora e regressam, mas querem ter perspetivas de futuro. Mantivemos uma linha pacífica por trinta anos nos acampamentos, respeitando o cessar-fogo, e a juventude cada vez pressiona mais os dirigentes sarauís. E sempre [indicamos para estarem] calmos e tranquilos. Mas até quando? Há 30 anos que a comunidade internacional olha para o outro lado. Estamos numa região muito complicada, que é o norte de África. Temos o Sahel a leste e as forças terroristas e extremistas na zona, e apesar de tudo conseguimos ter o nosso povo afastado destes fenómenos de extremismo. Se não houver solução isso vai complicar-se muito mais.
"MOROCCAN ROYAL COURT / HANDOUT"/Anadolu Agency/Getty Images
Em outubro do ano passado, um comité das Nações Unidas ouviu queixas de que nos campos de Tindouf há violações dos direitos humanos, como abuso sexual e detenção de pessoas contra a sua vontade pela Frente Polisário. Como responde a estas críticas? Os campos de refugiados de sarauís são os mais abertos. Há presença das Nações Unidas, o Alto Comissariado para os Refugiados, o PAM, centenas de ONGs europeias, intercâmbios diretos com visitas de jornalistas e famílias normais. Dissemos e reivindicámos às Nações Unidas que têm uma missão, a MINURSO, [e questionámos] ‘porque é que é a única sem mandato para vigiar os direitos humanos no território?’. Não só nos territórios ocupados mas também nos campos de refugiados. Não temos nada a esconder, não há nenhum prisioneiro de opinião pública. Não somos perfeitos, é verdade, ninguém é perfeito. Mas porque é que o conselho de segurança das Nações Unidas não aceita que a sua missão tenha esse mandato? Porque Marrocos não quer. Marrocos é quem viola os direitos humanos, é quem mantém o território do Sara Ocidental fechado. Marrocos tem medo de quem vê, escreve e denuncia. Nós não temos nenhum problema que venham jornalistas, deputados ou que as Nações Unidas tenham esse mandato.
Mais de 600 personalidades portuguesas submeteram uma carta ao governo português sobre o tema. Este tipo de movimentos leva o governo a assumir um papel mais ativo? Creio que sim e agradeço o apelo. Portugal é um país importante, o único país europeu que tem na sua Constituição o respeito da auto-determinação dos povos. Isto é extraordinário, mas como disse também não pode ser uma exceção. Nós olhamos para Portugal como um país Ibérico vizinho que pode ajudar, impulsionar os países europeus a fazer uma política diferente daquela praticada por alguns até agora. E agradeço porque sei que esta entrevista vai chegar ao piso nº38, sem traduções e que Guterres pode ajudar. Há alguns secretários que no primeiro mandato pensam em como fazer o segundo, mas já é o segundo. Há quem queira ficar para a História nos corações das pessoas, como Hammarskjöld da Suécia, contra a colonização. Há outros que querem uma casa na margem sul do mediterrâneo, quem sabe com a segunda mulher.
O secretário geral da ONU pode ajudar-nos, Portugal pode ajudar à solução. Tem localização, vai receber De Mistura, pode explicar como se resolveu a questão de Timor Leste e ajudar à pacificação e estabilidade. Temos todos muito a ganhar com isto, economicamente e com estabilidade da região. Não temos nada contra Marrocos, só queremos um dia num referendo dizer o que queremos fazer da nossa terra. Que o nosso povo de forma transparente, controlada, com garantias internacionais diga de forma clara [o que quer]. Não somos terroristas, não temos um projeto para fazer uma república talibã no Sara Ocidental. Partilhamos os valores importantes de respeito da legalidade internacional. Queremos a solução deste conflito.
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