Yulia Tymoshenko, ex-primeira-ministra da Ucrânia ao Expresso: “Qualquer guerra é uma guerra contra o mundo livre”
yulia tymoshenko em entrevista durante as conferências do Estoril em setembro de 2022
Ana Baiao
Chefe do Governo da Ucrânia por duas vezes e candidata à presidência nas eleições que foram ganhas pelo atual Presidente Volodymyr Zelensky, Yulia Tymoshenko deixa uma mensagem forte à Europa: “Cala-te e aguenta este período doloroso”. Em entrevista ao Expresso, descreve o “masoquismo” do Velho Continente ao tornar-se energeticamente dependente da Rússia, os objetivos de Putin e a falta de armamento
Yulia Tymoshenko foi figura de destaque na Revolução Laranja de 2004 e primeira-ministra da Ucrânia duas vezes – o mesmo número de vezes que foi detida, tendo sempre mantido que os motivos foram políticos. A última vez que saiu da prisão foi em 2014, na mesma altura em que o Parlamento ucraniano aprovou a destituição do então Presidente Viktor Ianukovich e marcou eleições antecipadas, o mesmo ano em que a Crimeia viria a ser anexada pela Rússia.
Vocal contra a invasão da Rússia, Tymoshenko veio a Portugal como oradora nas Conferências do Estoril e falou ao Expresso sobre as “ambições da Idade Média” que guiam as decisões do Presidente russo Vladimir Putin. Explicou porque acredita que um acordo de paz não é aceitável e falou da necessidade de sanções mais pesadas.
Foi apelidada de “princesa do gás” no final dos anos 90, depois de se tornar uma das principais revendedoras de gás russo. Como olha para a dependência que a Europa criou do gás russo? É verdade que até 1997 fui empresária, mas a partir de então, quando ganhei assento parlamentar, abdiquei de todos os meus negócios, porque a minha visão é que uma pessoa não pode ter dois corações: um de negócios e outro de política. Por isso, desde 1997 nunca estive [envolvida] em nenhum tipo de negócio e o meu marido não tem nenhum negócio na Ucrânia. Quanto à dependência energética da Europa do gás russo, é contra as regras e a sabedoria do mercado. A economia de mercado é gerida sobre os pilares do Ocidente. Há monopólio? Então é dependência que pode ser manipulada e instrumentalizada, e depois os preços deixam de ser preços de mercado, são estabelecidos politicamente.
A alternativa é o mercado e um sistema saudável, da vida normal.
Acredito que a Europa perde muito tempo em vez de diversificar os recursos energéticos e libertar-se dos da Rússia. A Europa até aumentou recentemente a sua dependência, e os exemplos mais visíveis são o Nordstream 1 e o Nordstream 2. Isso foi um certo tipo de masoquismo. A vida provou que foi uma forma errada de fortalecer o monopólio ou até salvá-lo, porque os regimes autoritários têm sempre a tentação de utilizar o que quer que tenham como armas, incluindo gás, carvão e petróleo. Assim sendo, hoje a Europa é forçada a passar por este processo de desmonopolização. É difícil, doloroso, mas tem de passar por isso. É como a cirurgia de uma pessoa com má saúde: tem de passar pela cirurgia e depois fica saudável, mas toda a cirurgia é dolorosa. Posteriormente, a Europa vai ficar liberta desta dependência. Isso é possível, seria uma oportunidade diferente, baixariam os preços de mercado dos recursos energéticos e ninguém poderia chantagear politicamente qualquer país da Europa. Daí o meu apelo: ‘Cala-te e aguenta este período doloroso’.
Teve vários encontros com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Como é que o descreve? Que pensa que está a orientar as suas decisões sobre a guerra? As suas ambições, porque ele acredita que ultrapassou o estatuto de Presidente apenas da Federação Russa. Acredita que é suficientemente poderoso para aspirar a ser parte do poder mundial, e por isso o seu objetivo é enfraquecer a liderança do Ocidente e alguns países ocidentais individuais no mundo, para mudar a ordem mundial e dar poder ao seu império em construção, à custa da apropriação de território de outros países. As suas ambições são a força motriz detrás das suas ações, mas em essência são ambições da Idade Média. É como se uma máquina do tempo o tivesse feito recuar vários séculos.É preciso compreender qual é o seu objetivo real. Ele não ficará satisfeito com o chamado ‘acordo de paz’ que algumas pessoas defendem, que é dar-lhe parte do Donbas e de outros territórios. Será apenas mais um passo para a próxima apropriação de território, como uma fase para os seus objetivos mundiais. A sua força, a mensagem de Putin, é que está conscientemente a violar as regras, está a fazer isto conscientemente, cruzando todas as linhas vermelhas. Isso significa que só pode ser combatido pela força. Quanto mais cedo o mundo democrático compreender isto, mais cedo vai chegar a oportunidade histórica de acabar com este mal no território da Ucrânia.
Diz que a guerra só pode ser vencida no campo de batalha e não chegando a um acordo, mas terá a Ucrânia as forças necessárias para ganhar apenas no terreno? Não há armas suficientes. O que está a faltar são armas, temos forças armadas suficientemente profissionais e corajosas. Mas alguns líderes no Ocidente pensam que é hora de a Ucrânia ser forçada ao chamado ‘acordo de paz’, que seria contra os interesses da Ucrânia. Ninguém na Ucrânia, nem o Presidente, nem a sociedade ou um único cidadão aceitaria este chamado acordo de paz, para o qual Putin está de momento a pressionar. É impossível. Vamos proteger e defender o nosso território, mas não vamos permitir que tomem e ocupem a Ucrânia através de um alegado ‘acordo de paz’.
Com a ‘russificação’ dos territórios ucranianos capturados e a possibilidade de a Rússia fazer referendos nesses locais em setembro, quão difícil vai ser para a Ucrânia recuperá-los? Não vai ser complicado. Os ingredientes são armas e territórios libertados. Depois, o chamado mundo russo vai evaporar-se, juntamente com estes referendos de territórios, professores russos e os seus supervisores.
Candidatou-se contra Zelensky nas presidenciais. Que pensa dele enquanto líder, atualmente? Agora somos todos uma equipa, todos os ucranianos. Todos os partidos políticos parlamentares ucranianos são uma equipa, estamos unidos em prol da vitória. No primeiro dia da guerra a política na sua forma habitual deixou de existir, em nome da nossa luta pelo direito dos ucranianos de viverem e serem livres. Por isso estamos a apoiar o Presidente ucraniano.
Em 2014 disse numa entrevista que o Kremlin tinha declarado guerra, mas que sanções severas podiam destruir os planos de agressão. Qual é a solução atual? As sanções são vitais e necessárias, mas as verdadeiras. Atualmente, apesar da adoção de sanções todos os dias, o regime de Putin recebe até mil milhões de euros como resultado de exportações de energia. E estes mil milhões diários são recursos financeiros suficientes para continuar esta guerra. As sanções têm de ser aumentadas e agravadas. Há três elementos: sanções, armas e unidade de todos os países democráticos. E compreender que já não há guerras locais ou periféricas. A Ucrânia provou isto de forma dolorosa: qualquer guerra é uma guerra contra o mundo livre. Por isso a unidade é um elemento da fórmula para a vitória.
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