A jornalista Shireen Abu Akleh morreu num ataque israelita. Quem vai investigar? O que diz a ONU? O que revolta os palestinianos?
Guy Smallman
A jornalista palestiniana da Al-Jazeera morreu durante um ataque israelita na Cisjordânia ocupada, levando a Autoridade da Palestina a responsabilizar o Governo de Naftali Bennett e as forças de ocupação pelo assassinato “a sangue frio”. Israel não assume a culpa, a ONU quer uma investigação “imediata e imparcial” à morte da influente repórter, mas israelitas e palestinianos, como em tantos outros temas, não se entendem. E agora? Perguntas e respostas sobre a morte de Shireen Abu Akleh
Shireen Abu Akleh era uma jornalista veterana de dupla nacionalidade palestiniana e norte-americana, que trabalhava na estação televisiva Al-Jazeera. Era uma das jornalistas mais influentes no mundo árabe, conhecida por cobrir a ocupação militar de Israel na Palestina há mais de duas décadas. Shireen Abu Akleh tinha 51 anos.
Shireen Abu Akleh
AL JAZEERA HANDOUT
Em que circunstâncias morreu?
Na quarta-feira, dia 11, a repórter morreu após ser baleada na cabeça. Shireen Abu Akleh estava a fazer uma reportagem no campo de refugiados na cidade de Jenin, no norte da Cisjordânia, território ocupado por Israel desde 1967. A jornalista envergava um colete azul, à prova de bala, onde se lia a palavra “Press”. O óbito foi anunciado pelo Ministério da Saúde da Autoridade da Palestina.
A Al-Jazeera acusou Israel de ter “assassinado a sangue frio” Abu Akleh. “Num trágico assassínio premeditado que viola as leis e as normas internacionais, as forças de ocupação israelitas mataram, a sangue frio, a nossa jornalista”, reagiu a emissora televisiva em comunicado. “Condenamos este crime atroz”, pelo qual “responsabilizamos o Governo israelita e as forças de ocupação”, vincou.
Que disse Israel?
O exército israelita justificou que se estava a defender de um intenso ataque em Jenin, no momento em que Shireen Abu Akleh morreu. Sem assumir culpas, acrescentou que está “a investigar a ocorrência e a analisar a possibilidade de os jornalistas terem sido atingidos por atiradores palestinianos”.
O primeiro-ministro de Israel, Naftali Bennet, não descartou a hipótese de a repórter ter sido vítima de fogo palestiniano, hipótese que aliás considerou ser provável. Porque, de acordo com o governante, havia palestinianos no confronto “a disparar indiscriminadamente” e nenhum militar israelita foi ferido. Bennet lembrou ainda que a Autoridade Palestiniana normalmente “atira as culpas para Israel sem qualquer fundamento”.
Mais tarde, o embaixador de Israel na ONU lamentou que a Palestina “se tenha apressado a culpar Israel, mesmo sem a possibilidade de conhecer os factos”. Gilad Erdan acrescentou: “Esta morte é uma tragédia, mas ninguém deve usá-la para fins políticos, especialmente aqueles que violam os direitos humanos diariamente”.
E a Palestina?
Também nas Nações Unidas, o embaixador palestiniano Riyad Mansur pediu uma “investigação internacional e independente” ao assassinato da repórter da Al-Jazeera, com “passos concretos” para apurar os culpados.
No entanto, Mansur deixou bem claro que a Palestina não vai aceitar uma investigação feita exclusivamente por Israel, nem colaborar com a “potência ocupante”. Isto porque “os criminosos não podem investigar-se a si mesmos”, sublinhou o embaixador palestiniano na ONU, depois de insistir que foram “as autoridades ocupantes israelitas que assassinaram [Shireen]”.
HAZEM BADER/Getty Images
Como reagiu a comunidade internacional?
Após a morte da repórter veterana, na quarta-feira, a Al-Jazeera pediu à comunidade internacional para “condenar e responsabilizar as forças de ocupação israelitas por terem atacado e matado deliberadamente a colega Shireen Abu Akleh”.
Os Estados Unidos foram um dos primeiros países a fazê-lo. “Estamos de coração partido e condenamos veementemente a morte da jornalista norte-americana Shireen Abu Akleh na Cisjordânia. A investigação deve ser imediata e completa, e os autores devem ser responsabilizados”, escreveu o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, no Twitter.
Também no Twitter, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português reagiu e condenou “a morte da jornalista Shireen Abu Akleh no exercício das suas funções na Cisjordânia, expressando sinceras condolências à família. Impõe-se uma investigação rigorosa ao incidente. A liberdade de imprensa e a proteção de jornalistas em contexto de conflito são basilares”.
Já neste sábado, o Conselho de Segurança da ONU “condenou firmemente o assassínio” de Shireen, numa declaração suscitada pelos EUA e que foi aprovada por unanimidade. O documento exige “um inquérito imediato, aprofundado, transparente e imparcial” e sublinha “a necessidade de garantir a responsabilização” dos autores do crime.
O que vai acontecer agora?
O ministro da Defesa de Israel, Benny Gantz, já prometeu uma investigação completa à morte da repórter, totalmente pública, e pediu que as autoridades da Palestina entregassem a bala que a matou.
“Lamento muito o que aconteceu. Atualmente não sabemos qual foi a causa direta da morte de Shireen. Estamos decididos a ter uma investigação em grande escala deste processo, e esperamos obter a cooperação de parceiros nesta questão. Sem o relatório dos achados patológicos e os achados forenses, será muito difícil para nós descobrir o que aconteceu no terreno”, justificou.
Que confusões se seguiram?
A Autoridade Palestiniana já esclareceu que não vai entregar o projétil para análise balística, rejeitando mais uma vez o pedido de Israel para realizar uma investigação conjunta. O assessor do Presidente palestiniano Hussein Al-Sheikh adiantou que vão fazer a sua própria investigação independente e darão conta dos “resultados com a maior transparência”.
A informação não foi bem recebida por Israel. O primeiro-ministro Naftali Bennett criticou a decisão da Palestina: “Espero uma colaboração plena, aberta e transparente. Espero também que a Autoridade Palestiniana não tome quaisquer medidas destinadas a obstruir a investigação ou a comprometer o seu devido processo de uma forma que nos impeça de chegar à verdade”.
Por sua vez, os Estados Unidos mostraram-se “prontos para apoiar” as investigações à morte de Shireen Abu Akleh, apesar de a Casa Branca ainda não ter recebido um pedido de assistência de nenhuma das partes.
“Percebemos que tanto Israel como a Autoridade Palestiniana já estão a conduzir investigações sobre as circunstâncias do assassínio”, disse a porta-voz da Casa Branca, numa conferência de imprensa na quinta-feira. Jen Psaki acrescentou que as conclusões devem ser partilhadas “para assegurar que todas as provas estejam disponíveis e sejam plenamente avaliadas”.
Amir Levy
A polémica não ficou por aqui. Durante o funeral de Shireen Abu Akleh, na sexta-feira, as forças militares israelitas atacaram várias pessoas que prestavam a última homenagem à palestiniana, em Jerusalém. A polícia argumentou que tinha sido atingida com “pedras e paus” por parte da multidão e, por isso, recorreu a gás lacrimogéneo e violência física, incluindo bastonadas e pontapés. No meio da confusão, o caixão foi derrubado, segundo imagens divulgadas pela televisão.
Perante a violência no funeral, a polícia de Israel decidiu abrir uma investigação porque quer “tirar lições deste incidente”, apesar de “apoiar os seus agentes”. Ainda assim, ressalva que os “oficiais foram expostos à violência de desordeiros que tentaram sabotar a cerimónia”, o que levou a polícia “a usar a força”.
“O comissário da polícia israelita, em coordenação com o ministro da Segurança Pública, ordenou um inquérito sobre o incidente. As conclusões serão apresentadas ao comissário nos próximos dias”, anunciou a polícia israelita este sábado.
É a primeira jornalista palestiniana a morrer?
Não, Shireen Abu Akleh junta-se a pelo menos 45 jornalistas que foram mortos pelas forças israelitas desde 2000, segundo o Ministério da Informação palestiniano citado pela Al-Jazeera. Já o Sindicato dos Jornalistas Palestinianos eleva o número de mortos para 55. Os repórteres estão identificados com um colete que diz “Press”.