O feriado de 9 de maio, que esta segunda-feira marca a vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazi, alcançou um estatuto sagrado na Rússia de Vladimir Putin, a cujos propósitos ideológicos a data serve bem. Com a efeméride iminente e os combates a intensificarem-se no leste da Ucrânia, a comunicação social estatal usa-o em todas as frentes para justificar os crimes dos militares russos na invasão.
Os observadores russos pensam em voz alta na rede social Twitter enquanto seguem com atenção as declarações do Kremlin e dos títulos do regime. Tentam decifrar se o Presidente poderá apresentar uma “vitória” como conquistar Mariupol e derrotar os combatentes do batalhão Azov que resistem na metalúrgica Azovstal como prova de que “a Rússia libertou o Donbas”, e se a população aceitaria que esse ganho de causa compensa as sanções e o isolamento internacional. Outra questão é saber se irão confirmar-se os rumores de uma mobilização em massa potencialmente arriscada.
O porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, assegurou na quarta-feira que as notícias de mobilização que surgiram no Ocidente são “treta”, ideia que repetiu na quinta-feira Vyacheslav Volodin, presidente da Duma, câmara baixa do Parlamento, numa entrevista à rádio “Komsomolskaya Pravda”. Volodin também afirmou que não partiria da Rússia um primeiro ataque nuclear.
O site independente Sota Vision nota, contudo, um número invulgar de propostas de emprego de agências estatais à procura de “especialistas em mobilização”. No seu canal de Telegram, Volodin citava, quinta-feira, uma notícia da agência oficial RIA Novosti sobre uma proposta do batalhão Azov, na Azovstal, de trocar civis ainda encurralados nos subterrâneos da metalúrgica por alimentos e medicamentos.
A Rússia tem sido reiteradamente acusada de obstaculizar a retirada de civis de Mariupol. Volodin chamou terroristas aos guerreiros do Azov e escreveu: “Eis um exemplo claro de quem são os nazis e porque é necessário combatê-los.”
A comunicação social opositora, exilada, e os media estrangeiros, têm publicado trabalhos de investigação que documentam as atrocidades e quem as cometeu, bem como a desintegração e as baixas que assolam as forças armadas russas. A maioria destes sites está bloqueada na Rússia, tendo muitos dos seus profissionais sido classificados como “agentes estrangeiros” pelo Governo russo.
“The New York Times” escrevia, quarta-feira, que os serviços secretos americanos providenciaram informação à Ucrânia que ajudou a eliminar generais russos, dos quais uma dúzia já perdeu a vida na frente de guerra. Já o site investigativo Mediazona, fundado por Nadya Tolokonnikova e Masha Alekhina (das Pussy Riot) dava conta de soldados da Ossétia do Sul (território separatista na Geórgia apoiado pela Rússia) que se negaram a combater na Ucrânia após constatarem o estado das forças russas.
“Não desejaria a um inimigo o que se passou naqueles 11 dias”, afirmou um militar numa reunião com o líder da Ossétia do Sul, Anatoly Bibilov. “Todo o equipamento foi inútil, para ser direto. Quando lá chegámos, ficámos alinhados, literalmente, a dois quilómetros da zona de combate. Ora, o pelotão de apoio e o pessoal médico deviam ficar na retaguarda. Não havia comando e, nessa noite, os morteiros começaram a rebentar.”
Outro site de investigação, Proekt, publicou a primeira parte de uma reportagem sobre o colossal fiasco militar que a invasão da Ucrânia tem sido para Moscovo. Resumia assim as falhas sistémicas: “Além da perfídia do Kremlin, a invasão da Ucrânia confirmou outra regra da Rússia: o caos reina em todo o lado. O planeamento da propaganda militar e política para esta guerra foi todo mal feito, contraditório e, por vezes, apenas estúpido”.
O Proekt calcula que o número de horas por semana de notícias e programas de atualidade na estação pública Channel One saltou de 28 para 90. O crescimento foi menos dramático no Rossiya-1, mas o tempo de antena dado ao propagandista Vladimir Solovyov explodiu. Esta semana foi a Mariupol tirar fotos, o que lhe valeu troça nas redes sociais pela camuflagem que usou.
Também surgiram dúvidas sobre se teria mesmo estado na cidade, pois no mesmo dia exibiu uma arma ligeira antitanque britânica no seu estúdio de Moscovo, sentado atrás de um laptop com um grande Z — o símbolo russo pró-invasão que lembra a suástica nazi. Entretanto, durante o fim de semana alargado do Dia do Trabalhador, outro propagandista da televisão, Dmitry Kiselyov, foi apanhado no Dubai, refúgio para russos sancionados, a relaxar “patrioticamente” de calção de banho cor de rosa.
Os jornalistas do Proekt também analisaram o comportamento bizarro de Putin e do ministro da Defesa, Sergei Shoigu. “A cúpula da liderança russa encontrou forma de lidar com o falhanço na frente e com a confusão mental. Putin e Shoigu decidiram ficar calados”. É raro, pois o ministro era considerado um fala-barato. “Ainda mais interessante é o que se passa com Putin. Desde 24 de fevereiro, o Presidente só fez 18 avaliações públicas da campanha militar, enquanto o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, lança apelos diários. Se nos primeiros dias Putin fazia apreciações quase diárias das operações militares, as pausas entre comparências começaram a esticar até às duas semanas.”
“O regime não tem nada para dizer”, explica fonte próxima do ministro da Defesa, citada por este órgai. Quarta-feira, Shoigu afirmou que as tropas russas bloquearam o batalhão Azov em toro o perímetro da Azovstal. O Proekt também descreve a reviravolta na máquina de propaganda, no final de março: deixou de assegurar que os russos estão prestes a tomar Kiev, e só vagamente indicou que tinham feito meia volta. Também há afirmações contraditórias sobre as baixas do lado russo.
O desaparecimento de Putin e Shoigu e a alegada detenção de um agente secreto de topo — Sergei Beseda, do Quinto Serviço do FSB, antigo KGB — por falhas na Ucrânia, anunciado pelo perito em segurança Andrei Soldatov, fez crescer especulação sobre divisão nas elites russas e guerra pela sucessão, por entre boatos de que Putin está doente. Soldatov afirmara na semana passada que o FSB fez Beseda aparecer no enterro de um veterano do KGB para calar rumores da sua prisão. A notícia do avistamento surgiu no canal do Telegram de um correspondente da televisão RTVI, indicando que não era permitido filmar no funeral.
Kevin Rothrock, analista do site noticioso independente Medusa, desfez outra iniciativa de propaganda. A “Avó Anya”, senhora de idade de uma aldeia ucraniana que foi enaltecida em memes e murais em toda a Rússia depois de ter aparecido num videm, em março, a cumprimentar as tropas ucranianas com uma bandeira da URSS, garantindo que rezava por Putin. Quarta-feira, o Centro de Comunicações Estratégicas ucraniano fez circular um vídeo em que a cidadã critica a Rússia e a guerra. A filmagem mostra uma casa, talvez a de Anya, destruída por fogo de artilharia. A divulgação do vídeo por Kiev coincidiu com uma visita a Mariupol do político russo Sergei Kiriyenko para inaugurar um monumento à “Avó Anya”, que descreveu como símbolo, com a bandeira soviética, da “continuidade da luta contra o nazismo e o fascismo”.