Em 1973, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou o direito de interromper voluntariamente a gravidez até à 24.ª semana de gestação. Agora, o jornal norte-americano “Politico” avança que o mesmo Tribunal se prepara para anular essa decisão histórica, com base em documentos que ainda não foram oficialmente divulgados, mas de que uma versão preliminar saiu hoje na imprensa.
A verificar-se, considera a presidente do Centro para os Direitos Reprodutivos, será o “retirar injustificado de um direito garantido que vigora há quase cinco décadas”. “Representaria o retrocesso mais prejudicial aos direitos da mulher na história do nosso país”, afirmou Nancy Northup em comunicado.
Caso o Supremo Tribunal decida que a Constituição não protege o direito da mulher a interromper uma gravidez, passa a caber a cada estado americano a decisão de proibir ou autorizar a realização do procedimento. Em reação à notícia, o Presidente dos Estados Unidos disse acreditar que “o direito de escolha da mulher é fundamental”. A confirmar-se a mudança, Joe Biden compromete-se a fazer aprovar legislação nesse sentido, mas alerta que serão necessárias maiorias pró-escolha nas duas câmaras do Congresso, Câmara dos Representantes e Senado.
Polónia e Nicarágua recuaram
O cenário traçado é inverso à tendência de alargamento do direito ao aborto que se verifica a nível mundial. Ainda assim, não seria caso único. A Polónia, que tinha uma das legislação mais restritivas da União Europeia, é dos poucos exemplos em que foi dificultado o acesso ao aborto. Em 2021, entrou em vigor uma nova lei que só permite interromper a gestação em casos de violação, incesto e perigo de vida da mãe.
As polacas viram ser-lhes negada a opção de abortar em casos de malformação fetal. Segundo um comunicado da Amnistia Internacional, desde que a lei entrou em vigor mais de mil mulheres recorreram ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos para reivindicar os seus direitos.
Também na Nicarágua houve um retrocesso legislativo, que em 2006 levou a que o aborto fosse completamente proibido. Segundo a organização Human Rights Watch, o Governo nicaraguense não publica estimativas do volume de abortos ilegais ou de quem é condenado por esse motivo, mas entre 2003 e 2013 cerca de 290 pessoas foram denunciadas às autoridades ou detidas por motivos ligados ao aborto. Este fora parcialmente descriminalizado durante 169 anos, podendo ser realizado por motivos “terapêuticos”.
Quase metade dos abortos são inseguros
Dados da Organização Mundial de Saúde mostram que 45% dos abortos a nível mundial não são seguros, e que entre 4,7% a 13,2% das mortes maternas anuais podem ser atribuídas a interrupções da gravidez sem condições sanitárias.
O Centro para os Direitos Reprodutivos calcula que 90 milhões de mulheres em idade reprodutiva vivam em países onde o aborto é totalmente proibido, como as Filipinas ou o Iraque. No entanto, a situação mais comum é viverem num dos 72 países que o permitem a pedido: globalmente há 601 milhões (36%) de mulheres em idade reprodutiva a viver em países que reconhecem esse direito. O limite gestacional mais comum para a realização de um aborto são as 12 semanas.
Décadas de liberalização
O Centro para os Direitos Reprodutivos descreve que ao longo das últimas décadas houve “ganhos monumentais” no direito da mulher ao aborto, com quase 50 países a liberalizarem as suas leis. “Alguma desta reforma foi incremental, permitindo à mulher aceder a um aborto legal apenas quando é uma ameaça à sua vida ou quando a gravidez resulta de violação. Mas muitas destas mudanças foram verdadeiramente transformadoras, revogando proibições completas do aborto a favor da autonomia reprodutiva das mulheres”, indica a instituição.
Foi em 2018 que a República da Irlanda, de tradição católica, realizou um referendo em que a maioria da população se pronunciou a favor de uma emenda à Constituição. A mudança foi significativa: um dos países mais restritivos instituiu o direito de abortar sem restrições até às 12 semanas de gravidez.
A Constituição irlandesa equiparava os direitos da mãe aos dos bebés ainda não nascidos, só sendo permitido o aborto quando a vida da mulher se encontrava em risco. Quem o fizesse ilegalmente estava sujeito a uma sentença de 14 anos de prisão.
Mas a expansão do direito ao aborto não tem sido limitada pela geografia. Em 2019, o Tribunal Constitucional da Coreia do Sul decretou que a proibição do abordo era inconstitucional e que a lei devia ser revista até dezembro de 2020. A CNN escreveu que o país criminalizara o aborto em 1953, com exceções para casos de violação, incesto e deficiência genética. As mulheres que fizessem abortos podiam enfrentar até um ano de prisão e os profissionais de saúde que as apoiassem arriscavam até dois anos.
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