De bem com Rússia e Ucrânia, Turquia está numa posição desconfortável
Recep Tayyip Erdogan (à esq.) e Vladimir Putin, olhos nos olhos, num encontro em Moscovo FOTO: Mikhail Svetlov/Getty Images
Com boas relações com Kiev e Moscovo, Ancara tenta manter uma neutralidade impossível no confronto entre os dois países. E as profundas ligações da Turquia aos tártaros da Crimeia ainda complicam mais as coisas
A Turquia está numa posição muito pouco confortável em relação ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, países com quem mantém relações cordiais. E uma guerra entre os dois países terá consequências graves para a economia turca. Por isso, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ofereceu-se para servir de mediador quando visitou Kiev no início do mês, e até convidou os dois Presidentes para uma cimeira em Ancara.
A mediação de Erdogan acabou por ser ultrapassada pela diplomacia europeia, com as recentes visitas do Presidente francês, Emmanuel Macron, e do chanceler alemão, Olaf Scholz, a Moscovo e Kiev.
Esta quinta-feira de manhã, quando já se iniciara a invasão russa da Ucrânia, Erdogan teve palavras duras, e de certa forma surpreendentes, para com Vladimir Putin. Disse que a invasão russa era “inaceitável”, defendeu a integridade territorial da Ucrânia e disse que esta operação militar é ilegal à luz do direito internacional.
O peso da Rússia sobre a Turquia
Trata-se de palavras duras e pouco habituais que Erdogan dirigiu a Putin já que, nos últimos anos, os dois líderes cultivaram uma relação de proximidade, apesar de os dois países se encontrarem em lados opostos em conflitos como a Síria ou a Líbia.
Mas o peso da Rússia sobre a Turquia é visível a vários níveis: os russos estão a construir a primeira central nuclear turca; são o principal mercado turístico da Turquia; fornece 40% do gás natural importado pela Turquia, através de dois gasodutos através do Mar Negro que ligam diretamente os dois países; e, recentemente, Moscovo vendeu a Ancara mísseis S400, que causaram discórdia no seio da NATO, da qual a Turquia é membro.
Também durante a sua recente visita a Kiev, para além de um acordo de comércio livre, Erdogan assinou vários acordos militares, nomeadamente a venda de fragatas turcas e o estabelecimento de uma fábrica para produção de drones turcos na Ucrânia.
Recep Tayyip Erdogan e Volodymyr Zelensky, chefes de Estado turco e ucraniano, num encontro em inícios de fevereiro, em Kiev FOTO: Getty Images
Ancara já tinha vendido 20 drones militares a Kiev, e em outubro passado um deles foi utilizado no leste da Ucrânia para destruir artilharia dos separatistas russos. Esta quinta-feira, surgiram informações segundo as quais alguns dos primeiros alvos das tropas russas na Ucrânia foram precisamente locais onde estes veículos aéreos não tripulados estavam armazenados. Moscovo conhece bem a eficácia destas armas já que foram utilizados, no ano passado, na guerra entre o Azerbaijão e a Arménia, em torno do enclave de Nagorno-Karabakh.
Perante a guerra em curso, a Turquia numa posição muito difícil já que, como membro da NATO, fica obrigada a apoiar qualquer ação da Aliança Atlântica. Mas estaria depois refém das retaliações russas — Moscovo já usou táticas duras contra a Turquia, por exemplo proibindo todos os voos charters depois da Turquia ter abatido um jato russo na Síria em 2015, ou proibindo a importação de produtos agrícolas turcos várias vezes
Por isso, Erdogan tem tentado manter-se o mais neutral possível, e por diversas vezes acusou os governos ocidentais de “agravarem a crise entre a Ucrânia e a Rússia”, e de não demonstrarem “uma atitude positiva” em relação a Moscovo.
Um trunfo chamado Bósforo
Pela sua localização geográfica, há um trunfo que a Turquia poderia jogar neste contexto — o Estreito do Bósforo, que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Negro. Na manhã desta quinta-feira, o embaixador ucraniano em Ancara pediu ao Governo turco para que o fechasse à passagem de barcos de guerra russos.
O Estreito é considerado águas internacionais, mas a Turquia podia faze-lo já que, pela Convenção de Montreux (1936), que regula a passagem de navios pelo Estreito e que dá a possibilidade da Turquia condicionar o trânsito em tempo de guerra e quando a segurança da Turquia estiver posta em causa.
O pedido do diplomata ucraniano não teve resposta. Apesar do apoio à Ucrânia, a Turquia também não quer melindrar a sua relação com a Rússia.
Tártaros da Crimeia complicam a situação
A Turquia mantém fortes ligações aos tártaros da Crimeia, um grupo étnico muçulmano turco, outrora a maioria dos habitantes da Crimeia, e que ainda falam um dialeto do turco. A ligação dos tártaros e da Crimeia à Turquia data do Império Otomano, quando a península e uma parte do sul da Ucrânia (incluindo Odessa) eram um estado vassalo dos Otomanos.
Os tártaros ficaram sob controlo russo após os otomanos terem perdido a região, na guerra de 1787-1791. A maioria foi deportada por Estaline, depois da II Guerra Mundial, para a Ásia Central, acusados de terem colaborado com os nazis. Após séculos de repressão e deportações, hoje os tártaros são uma minoria, mas bem organizada, e que continua a resistir à anexação da Crimeia pelos russos em 2014, e que mantém ligações políticas à Turquia, onde vivem mais de 3 milhões de descendentes de tártaros.
O Congresso Tártaro da Crimeia (Majlis) foi banido pelos russos, mas continua ativo em Kiev, financiado por Ancara, e liderado por Mustafa Jamilov. A Turquia também está a financiar a construção de 500 casas para os cerca de 20 mil tártaros que fugiram da península depois da anexação e está a construir uma grande mesquita mesmo por trás do moderno centro comercial Ocean City em Kiev, num terreno doado pelo mais rico oligarca ucraniano Rinat Akhmetov, e com pleno acordo do presidente da Câmara de Kiev, o ex-pugilista Vitaly Klitschko.
Em Kiev, Erdogan voltou a repetir que os tártaros “são uma verdadeira ponte histórica de amizade entre os dois países”, e fez questão de se reunir com Jamilov.
Desde sempre que a Turquia tem tido uma voz ativa contra a anexação da Crimeia, nomeadamente na ONU. No ano passado, foi um dos fundadores da Plataforma Crimeia, um movimento idealizado para promover uma solução diplomática para a questão da península, que organizou um primeiro encontro em agosto do ano passado. Mas, por outro lado, Ancara não apoiou as sanções económicas decididas por Washington e pela UE contra a Rússia após a anexação.
As teias entre a Turquia, os tártaros e a Rússia são complexas. Em 2017, já depois da anexação da Crimeia, os serviços secretos russos enviaram dois líderes políticos tártaros, Ilmi Umerov e Ahtem Chigoz, para Ancara, obtendo em contrapartida a libertação de dois espiões russos, detidos numa prisão turca na sequência do assassínio de sete dissidentes da Chechénia.
É um equilíbrio delicado: “No final, a afinidade de Ancara pela sua etnia na Crimeia é posta sempre de lado quando se trata das relações globais com a Rússia”, escreveu recentemente Amberin Zaman, uma jornalista turca. “Apesar das declarações de solidariedade, a abordagem da Turquia em relação à Crimeia ilustra perfeitamente os limites que Ancara tem em relação a Moscovo.”