Internacional

“Putin mostrou que não aceita a existência da Ucrânia como um Estado independente”: a análise de especialistas ao discurso do Presidente russo

22 fevereiro 2022 0:44

Foto: ADAM BERRY/GETTY IMAGES

Num tom “sombrio, negativo, pessimista e zangado”, Vladimir Putin mostrou no discurso que fez esta segunda-feira “como realmente pensa”. No terreno, o conflito pode agravar-se com o reconhecimento da independência de regiões separatistas na Ucrânia. “O mais provável é as tropas ucranianas resistirem. E com isso está criado um pretexto para a invasão russa”, avaliam os especialistas em política internacional com quem o Expresso falou

22 fevereiro 2022 0:44

Ao afirmar, esta segunda-feira, que a Ucrânia que conhecemos hoje em dia foi inteiramente criada pela Rússia comunista, Vladimir Putin, Presidente russo, mostrou que “não aceita a existência da Ucrânia como um Estado independente” e que a independência deste país “é uma aberração política, histórica e cultural”. A análise é feita por Miguel Monjardino, analista político, segundo o qual há duas formas de ler o discurso de Putin em relação ao que pode ser o futuro da Ucrânia — como um “passo atrás” ou um “passo em frente”.

Putin pode ficar apenas pelo reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia — decisão que foi anunciada esta segunda-feira pelo Presidente russo — e “não acontecer mais nada”, mas pode também ter encontrado mais um “pretexto”, o derradeiro pretexto, para uma intervenção militar na Ucrânia. “O discurso também pode ser lido como esse passo em frente, sobretudo a parte final, em que o pretexto para uma intervenção militar na Ucrânia está criado”.

Daqui para a frente, “tudo pode acontecer a qualquer momento”, acrescenta o também professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, sugerindo que as forças separatistas russas que controlam parte destas duas regiões podem vir a querer conquistar mais território do que aquele que detêm atualmente. “Se isso acontecer, o mais provável é que as forças ucranianas resistam, estando assim criado o tal pretexto para uma intervenção russa. Putin sentirá que tem legitimidade para uma intervenção militar em território ucraniano e aí caminharemos para uma guerra no país.”

Com a incerteza toda dos últimos dias, com supostos avanços e recuos e ditos e desmentidos, não adianta fazer previsões, mas o tom de Vladimir Putin torna mais “credível” esta segunda hipótese, diz Miguel Monjardino. “Foi um tom tão sombrio, tão negativo, tão pessimista e tão zangado que penso que devemos considerar a hipótese de esta segunda opção — a do passo em frente — ser a mais credível.” E não será necessário “muito tempo” para percebermos qual a estratégia que a Rússia irá seguir, diz também.

Putin acusa Ucrânia de ser “colónia de fantoches”

Vladimir Putin anunciou esta segunda-feira que a Rússia vai reconhecer a independência das duas regiões separatistas pró-russas do leste da Ucrânia. Numa declaração ao país, afirmou que a Ucrânia se tornou uma “colónia de fantoches”, sendo controlada a “partir de fora”, e acusou o país de estar a preparar uma intervenção militar contra a Rússia, representando por isso uma ameaça. Também afirmou que a Ucrânia moderna foi criada pela Rússia comunista e que Lenine foi o “arquiteto” do país, estando em curso atualmente um processo de “descomunização”. “Querem descomunização? Está bem. Mas não é preciso parar a meio. Estamos prontos para vos mostrar o que significa para a Ucrânia a verdadeira descomunização”.

O discurso parece ter sido recebido com alguma estranheza mas acaba por não ser novo. “A reunião do conselho de segurança russo foi hoje de manhã e não é possível que um discurso com este alcance político e histórico tenha sido escrito depois dessa reunião”, diz Miguel Monjardino, para quem as palavras proferidas dão continuidade a um ensaio do Presidente publicado no site da presidência russa em julho do ano passado, intitulado “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians”.

“Putin mostrou hoje como realmente pensa, mas não pensa assim há uma semana. Pensa há muito tempo. Fez este discurso hoje porque claramente não está a conseguir o que quer na Ucrânia. Sente que a sua janela temporal se está a fechar e que tem de agir agora.”

Miguel Monjardino, analista político e professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa 

À semelhança do discurso feito esta segunda-feira, “abundam nesse ensaio emoções como o medo, a zanga, a fúria, e uma visão muito paranóica das relações internacionais”, diz o investigador. “Putin mostrou hoje como realmente pensa, mas não pensa assim há uma semana. Pensa há muito tempo. Fez este discurso hoje porque claramente não está a conseguir o que quer relativamente à Ucrânia. Sente que a sua janela temporal se está a fechar e que tem de agir agora.” Quanto ao discurso desta segunda-feira, ficou também claro que o Presidente russo “acredita que todas as repúblicas hoje independentes se calhar não mereciam sê-lo”. Visão a que, de resto, importa dar atenção, uma vez que “algumas dessas repúblicas estão em território da NATO e da União Europeia”, sublinha. “Para o Presidente russo, a ordem regional de segurança e defesa a que nos habituámos a viver nos últimos 30 anos é inaceitável.”

Também Bernardo Pires de Lima, investigador no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), vê semelhanças entre o discurso desta segunda-feira e o ensaio assinado por Putin no ano passado. “Tudo o que o Presidente russo disse está escrito nesse ensaio. Há uma manipulação grosseira de factos históricos, o que é indiferente para quem o ouve no país.” Putin “quer ser galvanizado na frente pós-imperial e na recuperação da mitologia da irmandade ortodoxa russófona”, não aceitando que “a sua economia esteja ao nível da espanhola e que a sua demografia esteja em declínio”, ao mesmo tempo que ainda tem “uma pandemia para lidar, ao contrário dos outros países”. Também lida com elevados níveis de corrupção no país e uma “oposição minada”. Neste contexto, sente que “tem de criar uma série de escapatórias na frente externa, mantendo uma dinâmica de poder”. E discursos como o de hoje servem esse propósito “na perfeição”.

Putin “arriscou” porque “não terá grande prejuízo internacional”

O que não significa, porém, que seja só retórica. Comparando a situação na Ucrânia com o que aconteceu na Geórgia em 2008, quando a Rússia anunciou o reconhecimento da independência da Ossétia do Sul e da Abecásia, Bernardo Pires de Lima sublinha que Putin “arriscou agora o mesmo método”, sabendo de antemão que “não terá um grande prejuízo internacional com isso”. “Há prejuízos económicos a considerar. A ocupação das duas províncias no leste da Ucrânia foi cara, a investida na Síria foi muito cara, a manutenção do separatismo é cara. Mas Putin terá certamente medido essas consequências.”

“Com todas as hesitações por parte dos europeus e dos EUA na Ucrânia, Putin torna-se uma espécie de ‘kingmaker’ de tudo o que está a acontecer, aproveitando este contexto para erguer uma nova doutrina, sem com isso prejudicar a relação com a China.”

Bernardo Pires de Lima, investigador no Instituto Português de Relações Internacionais

Mesmo o impacto que este avanço poderá ter sobre a relação da Rússia com a China — que “sempre defendeu o respeito pela integridade territorial da Ucrânia e as fronteiras saídas do quadro negocial do pós-guerra fria” — terá sido avaliado por Putin. “O processo de decisão do Presidente russo é muito hermético. Ele está a fingir que ouve mas na verdade já tomou a sua decisão. Há um certo teatro, em que se torna o centro das atenções. Acaba por ser uma jogada de mestre, uma vez que toda a política internacional fica concentrada e a jogar ao campeonato do palpite, tentando adivinhar o que vai ou não fazer.” Com “todas as hesitações por parte dos europeus e dos EUA” sobre o que fazer na Ucrânia, Putin torna-se uma “espécie de ‘kingmaker’ de tudo o que está a acontecer, aproveitando este contexto para erguer uma nova doutrina, sem com isso prejudicar a relação com a China.”

Não é de descartar, porém, a hipótese de haver uma escalada do conflito no leste da Ucrânia, na região controlada por separatistas russos, se as forças ucranianas tentarem “assumir o controlo da situação no terreno”. “Isso obrigaria Moscovo a ir a jogo”, antecipa diz Bernardo Pires de Lima, ressalvando que todas as opções estão em aberto e que só depois da reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU, pedida esta segunda-feira por Kiev, será possível traçar cenários menos especulativos. Seja como for, não antecipa uma resposta concertada da NATO. “Uns países estarão mais disponíveis para trabalhar soluções políticas e diplomáticas, outros já estão no terreno, outros vão privilegiar grandes sanções e outros, ainda, não vão fazer praticamente nada. Estou certo é que não haverá nada sob o chapéu da Aliança Atlântica.”