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Erros grosseiros na propaganda russa: “Fábrica de produção falsa” recorre a vídeos forjados para confirmar tese de ataques ucranianos

Foto: Getty Images
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Os filmes de propaganda russa podem ter piorado, mas a audiência interna, sobretudo as gerações mais velhas, acreditam na “fábrica de produção falsa”, considera o site de investigação Bellingcat

Flashes de luz e estrondos expõem, na noite, uma batalha que avança na floresta. Um homem que enverga um capacete chora de dor. Está ferido. Poucas pistas, além destas, são fornecidas pelas imagens em vídeo. É o canal televisivo estatal russo que adianta uma explicação: o soldado em sofrimento será um desertor ucraniano, que fazia parte de uma fação divisionária enviada além da linha do inimigo e em direção a um território separatista de influência russa. Estava encarregado da missão de explodir uma fábrica de cloro em Horlivka, uma cidade perto de Donetsk controlada pelos rebeldes.

Durante o tiroteio, dois infiltrados foram mortos, acrescenta o canal televisivo. Por “feliz coincidência”, autoridades da República Popular de Donetsk – uma das duas entidades pró-Moscovo no leste da Ucrânia – recuperaram o vídeo da câmara na cabeça do homem ferido.

O relato dramático da televisão russa sobre este incidente era, no entanto, inteiramente falso, reporta o jornal “The Guardian”. Os efeitos sonoros, de tiros e explosões, tinham, na verdade, mais de uma década, tendo sido gravados em abril de 2010, durante um exercício militar finlandês, de acordo com investigadores independentes.

Os serviços secretos ucranianos acreditam agora que o vídeo é da autoria do Departamento Central de Informações russo (GRU), que tem trabalhado de forma ativa na Ucrânia desde a anexação da Crimeia, em 2014, e a queda de um Boeing 777-200ER (o conhecido voo da Malaysia Airlines – MH17), em Donetsk, no leste ucraniano.

Desinformação do Kremlin

Os criadores do filme retiraram o vídeo finlandês original da internet, e juntaram o excerto áudio ao novo conteúdo em vídeo feito há duas semanas, editando apenas algumas expressões animadas de recrutas finlandeses. Elliot Higgins, fundador do site de investigação Bellingcat, considerou, em declarações ao “Guardian”, que este facto não é surpreendente, já que “a Rússia tem um longo historial deste tipo”, admirando-se apenas por a Federação Russa “não se ter tornado melhor a fazê-lo”. Aliás, “de certa forma, até piorou”, porque o que faz “é pateta e preguiçoso”, analisa Elliot Higgins.

Apesar de o público internacional ser imune à desinformação do Kremlin, a audiência nacional tende a acreditar em narrativas televisivas falsas, “teatralmente criadas” com objetivos propagandísticos. O jornalista de investigação acredita que as gerações mais velhas caem ainda com maior facilidade na propaganda estatal.

Na última semana, a Rússia divulgou inúmeras histórias falsas, levando o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, a definir a propaganda russa como “fábrica de produção falsa”. Entre as fabulações russas destacou-se a acusação de que a Ucrânia estava a planear atacar regiões separatistas e de que espalhou pela fronteira veículos blindados, o que teria sido alegadamente registado pelas câmaras integradas nos capacetes.

Pretextos para a invasão

Segundo Higgins, o objetivo do Kremlin é criar um pretexto para a invasão. Parte da estratégia, de acordo com o jornalista, foi desenvolvida com a televisão russa a transmitir informação que sugeria que uma crise humanitária grave se desenrolava no leste ucraniano. Um dos argumentos utilizados é o forte bombardeamento de iniciativa ucraniana a que estariam sujeitos os moradores na fronteira, o que Kiev desmente.

As informações variam de relatórios sobre o aumento dos bombardeamentos a “provocações” mais bizarras, como a tentativa de um carro-bomba causar estragos do lado de fora do prédio da administração separatista em Donetsk, na sexta-feira. No mesmo dia, o líder pró-Moscovo naquele território, Denis Pushilin, divulgou um vídeo dizendo que a situação se tornou tão grave que os civis tiveram que ser levados de autocarro para um local seguro e para a Rússia.

A ordem de evacuação dada por Denis Pushilin foi divulgada a 18 de fevereiro, mas o site Bellingcat desvendou, a partir dos metadados do vídeo no canal Telegram, que a declaração tinha sido gravada dois dias antes, na última quarta-feira, quando a situação entre ucranianos e separatistas era ainda de acalmia.

A tecnologia de edição de vídeo é relativamente recente, mas a mensagem é antiga. Os ‘media’ finlandeses apontaram que a União Soviética, em novembro de 1939, recorreram a um pretexto semelhante para iniciar a guerra contra a Finlândia durante o inverno. No dia anterior à invasão soviética, Moscovo apontou o dedo: as tropas finlandesas é que iniciaram um ataque.

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