Seis razões (e cinco ilustrações) que justificam os apelos ao boicote dos Jogos Olímpicos de Pequim
“Sem liberdade não há Jogos Olímpicos”, defende-se numa manifestação em Londres FOTO: May James / Getty Images
Um conjunto de dossiês polémicos, alguns dos quais duram há décadas, colocam a China sob permanente escrutínio internacional. Sempre que Pequim procura projetar prestígio, como acontece com a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno, não falta quem recorde que há problemas que continuam por resolver. Da ocupação do Tibete à ameaça de invasão a Taiwan, da repressão da minoria uigur à falta de transparência em relação à origem da pandemia de covid-19
Ocasiões como os Jogos Olímpicos projetam os países que os organizam à escala planetária. Tornam-se montras de poder e de capacidade, mas podem contribuir também para virar os holofotes para situações que se quer manter discretas. É o que acontece com a China, anfitriã dos XXIV Jogos Olímpicos de Inverno até domingo próximo.
Alguns pesos pesados da política, e também do desporto, como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim. À semelhança do que aconteceu na cerimónia de abertura, não se farão representar na festa de encerramento.
O boicote não prejudicou o evento a nível desportivo, já que os mesmos países enviaram atletas para competir, mas beliscou o prestígio de Xi Jinping. Nos corredores políticos, significa uma reprovação tácita da atuação do Presidente chinês e, implicitamente, das lideranças que o antecederam, em problemas que se arrastam há anos.
OCUPAÇÃO DO TIBETE
Apelidada de “teto do mundo”, em virtude dos picos montanhosos que a caracterizam, a região do Tibete vive sob ocupação chinesa há sete décadas. A repressão do povo tibetano — que incluiu a destruição de cerca de 6000 mosteiros e templos budistas — atirou grande parte da população para um exílio forçado. Foi também o destino do líder espiritual Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 1989, que acusa o regime chinês de “genocídio cultural”.
“Estes 50 anos trouxeram sofrimento e destruição incalculáveis à terra e ao povo do Tibete. Hoje, a religião, a cultura, a língua e a identidade estão em vias de extinção. O povo tibetano é visto como um criminoso que merece ser morto”, afirmou em 2009, por altura do 50.º aniversário de uma tentativa de revolta tibetana, que foi reprimida e que o levou ao exílio na Índia. “No entanto, é uma conquista a questão do Tibete estar viva e a comunidade internacional interessar-se cada vez mais por ela. Não tenho dúvidas de que a justiça da causa do Tibete prevalecerá, se continuarmos a trilhar o caminho da verdade e da não-violência.”
Se fosse um país independente, o Tibete seria, em área, o 10.ç maior do mundo. Para a China, esse imenso território — que faz fronteira com Myanmar, Butão, Nepal e Índia, nomeadamente com a conflituosa região da Caxemira — é parte inalienável da sua soberania. Para o povo tibetano, é a sua pátria ancestral e um Estado independente desde 1913 (após o fim da dinastia Qing), hoje sob ocupação ilegal.
ILUSTRAÇÃO: Badiucao
Aquando dos Jogos Olímpicos (de verão) de Pequim de 2008, a campanha “Liberdade para o Tibete” motivou protestos em todo o mundo. O tradicional rito do transporte da tocha olímpica desde a Grécia até ao local dos Jogos transformou-se numa prova de obstáculos, com ativistas a tentarem romper o cordão de segurança à volta do estafeta para apagar a chama.
Em outubro passado, em vésperas de se repetir o ritual, dois ativistas foram detidos junto à Acrópole de Atenas, após desfraldarem uma bandeira do Tibete e uma tarja que dizia: “Revolução Hong Kong Livre”. Eram uma tibetana de 18 anos e um rapaz de 22, nascido em Hong Kong e a viver no exílio, outro dossiê quente que a China tem em mãos.
CERCO À DEMOCRACIA EM HONG KONG
Quando Hong Kong foi transferido do Reino Unido para a República Popular da China, em 1997, ficou acordado um período de transição de 50 anos, durante o qual a antiga colónia britânica conservaria a sua autonomia económica, bem como direitos e liberdades não extensivos à população da China Continental.
Esse estatuto — ao abrigo do princípio “um país, dois sistemas” —tem sofrido erosão, com sucessivas leis a subordinarem crescentemente o quotidiano de Hong Kong à vontade de Pequim. A 30 de junho de 2020, a introdução de uma nova Lei da Segurança Nacional no território, na sequência de gigantescas manifestações populares pró-democracia, acentuou esse controlo político e o cerco à oposição democrática.
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A nova lei “limpou” as ruas de manifestantes, que passaram a correr o risco de terem de responder por crimes de “secessão, subversão, terrorismo”, e colocou uma mordaça no sector da comunicação social. Jornais independentes tiveram de fechar portas na sequência da prisão de jornalistas ou da apreensão de ativos. O último foi o “Zhongxin News”, em janeiro passado, e antes dele o “Stand News”, em dezembro. Um dos títulos mais populares, o “Apple Daily”, encerrou em junho de 2020. O seu proprietário, o milionário Jimmy Lay, foi preso e condenado a 14 meses de prisão por “organização de protestos ilegais”.
Na avaliação da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China surge como um dos “predadores” da liberdade de informação. No relatório de 2021, ocupa o 177º lugar (em 180), devido a “censura na Internet, vigilância e propaganda a níveis sem precedentes”. Há 78 jornalistas e 39 “jornalistas cidadãos” presos na China.
‘BIG BROTHER’ CHINÊS
À partida para Pequim, vários comités olímpicos nacionais sugeriram aos membros das respetivas delegações que usassem telemóveis provisórios durante a sua estada na China. Segundo o jornal holandês “De Volkskrant”, o Comité Olímpico dos Países Baixos proibiu mesmo os seus atletas de levarem smartphones e laptops pessoais.
Com o evento a decorrer em tempo de pandemia, a organização solicitou a atletas, dirigentes e jornalistas que instalassem a aplicação MY2020 para reportarem, diariamente, o seu estado de saúde. Esta medida desencadeou receios de espionagem digital.
ILUSTRAÇÃO: Badiucao
Nos últimos anos, na China, um sistema de vigilância intrusivo tem ganho contornos cada vez mais Orwellianos. Uma das suas dimensões é o Sistema de Crédito Social, que consiste num mecanismo de pontuação dos cidadãos e que os recompensa ou penaliza em função de comportamentos.
De iniciativa governamental, este projeto lançado em 2014 ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da China Continental — numa primeira fase, Macau e Hong Kong ficam de fora.
REPRESSÃO DOS UIGURES
A segregação e a violência com que as autoridades chinesas tratam a minoria uigur (muçulmana) têm-lhes valido acusações de “genocídio”. Segundo organizações internacionais dos direitos humanos, nos últimos anos, mais de um milhão de uigures foram enviados para “campos de reeducação” na província de Xinjiang, no noroeste da China. Há denúncias de trabalhos forçados, de esterilização à força de mulheres e relatos de tortura e abusos sexuais.
Pequim tem repetidamente negado maus tratos aos uigures e defende as suas ações em Xinjiang com a necessidade de combater o terrorismo. Dentro desta narrativa, os campos são considerados uma espécie de centros de formação vocacional cujo objetivo é manter os uigures longe da radicalização.
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Quando anunciaram o boicote diplomático aos Jogos de Pequim, os Estados Unidos justificaram a posição com o “genocídio e os crimes contra a Humanidade em curso em Xinjiang e outras violações dos direitos humanos” pelo regime chinês.
Numa tentativa de limpar a imagem — ou de passar a mensagem de que não aceita lições em matéria de direitos humanos —, a China proporcionou um momento de grande simbolismo na cerimónia de abertura dos Jogos: um dos dois atletas escolhidos para acender a chama olímpica no interior do estádio foi um esquiador uigur.
‘ASSÉDIO’ A TAIWAN
Também chamada China Nacionalista, Taipé ou Formosa, esta ilha situada a cerca de 180 km da costa chinesa é um Estado independente para apenas 15 países em todo o mundo (e funciona como tal, sob um regime democrático). Mas a disputa geopolítica em torno do seu futuro político é um desafio à paz mundial.
Para Pequim, Taiwan simboliza a dificuldade de implantar a revolução maoísta em todo o território chinês e corporiza um projeto político alternativo que ameaça a política da “China Única”, segundo a qual há apenas um Estado chinês soberano e Taiwan faz parte dele.
De tempos a tempos, a China manifesta o seu ascendente sobre a ilha fazendo incursões aéreas na área de defesa de Taiwan. Em finais de janeiro, Pequim bateu o recorde diário de intrusões, com 39 aviões de guerra a aproximarem-se da “província rebelde”. Este modus operandi tem valido à China condenações internacionais, mas para Pequim funcionam como simulações de uma eventual invasão de Taiwan no caso de falhar a reunificação por via pacífica, como aconteceu com Hong Kong e Macau.
A ORIGEM DA COVID
Mais de dois anos após o início da pandemia de covid-19 — cujo vírus foi detetado, pela primeira vez, em dezembro de 2019, na cidade chinesa de Wuhan —, a falta de explicações sobre como tudo começou origina desconfianças em relação à responsabilidade da China.“Infelizmente, o que vimos da República Popular da China, desde o início desta crise, é incumprimento das suas responsabilidades básicas em termos de acesso e partilha de informações”, acusou o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.
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Entre 14 de janeiro de 10 de fevereiro de 2021 — quase um ano após ser declarada a pandemia —, uma missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) esteve por fim na China, para tentar apurar factos. Divulgado o relatório final, um conjunto de 14 países, entre os quais os EUA, Reino Unido, Japão e Israel, emitiu um comunicado conjunto dizendo que o relatório “foi significativamente atrasado e não continha acesso a dados e amostras completos e originais”.
Esta posição soou como crítica à influência da China dentro da OMS e à incapacidade da organização conduzir uma investigação independente, já que Pequim pôde vetar cientistas destacados para integrar a missão e impor limitações aos investigadores durante a visita.