Conflito Ucrânia-Rússia. 24 horas para travar a guerra? “Este encontro entre Putin e Scholz tem grande carga, grande peso, é uma grande responsabilidade”
Uma mulher de 52 anos treina para defender o país nas horas vagas, como centenas de outros ucranianos em cada cidade FOTO: Sean Gallup/Getty Images
A guerra parece estar mesmo para acontecer: há civis que pedem para treinos de guerra, pessoas com malas feitas, embaixadas vazias. Mas oficialmente, as partes continuam à mesa das negociações. Duas especialistas explicam ao Expresso quais os trunfos de cada bloco – e o que fazer nestes derradeiras horas para impedir uma guerra na Europa
Uma guerra com dia marcado para começar não é o mesmo que um ultimato que não se cumpre e leva à guerra. A História tem destes episódios. Mais atípico é haver uma informação, recolhida por espiões dos Estados Unidos, a fixar o dia exato para uma incursão militar: 16 de fevereiro é, alegadamente, o dia em que a Rússia vai tentar invadir território ucraniano. Há muito que a incursão está “iminente” mas, diz ao Expresso a investigadora Sónia Sénica, do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), “o dia é que vai mudando”.
A investigadora continua a acreditar que a diplomacia não esgotou os seus trunfos. Quando as agências de informações norte-americanas dizem que podemos estar a horas de um movimento de tropas russas para lá da fronteira da Ucrânia, um último encontro pode ser significativo para resolver a situação ou, pelo menos, alargar o prazo para negociar. “Não estou a menosprezar as informações dos Estados Unidos, mas os interlocutores principais, oficialmente, ainda estão em conversações. Como disse Sergei Lavrov [ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia], os russos capitalizariam muito mais se concluíssem os exercícios militares, fossem para casa e continuassem a pressão diplomática”, diz a investigadora do IPRI. Esta terça-feira de manhça, parece que as cúpulas da Defesa russa ouviram Lavrov: alguns batalhões de facto começaram a recuar, aparentemente em direção às suas bases militares de origem.
Raquel Freire, professora de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra, foca as desvantagens para Moscovo de uma invasão da Ucrânia. “Apesar de a possibilidade ser bem real, uma invasão traria custos pesados para a Rússia, e não garantiria vários dos objetivos visados, incluindo num cenário pós-intervenção. Os ganhos mais imediatos passariam pelo bloqueio da possibilidade de adesão da Ucrânia à NATO e pela fragilização ucraniana em todas as dimensões que um conflito armado implica, mas que não teria apenas repercussões na Ucrânia. O objetivo de contenção da NATO não seria alcançado, a renegociação de uma nova ordem de segurança europeia ficaria adiada e as sanções teriam forte impacto a diferentes níveis na Rússia, não só económico-políticos, mas também sociais, eventualmente permitindo desenvolvimentos desfavoráveis ao Kremlin”, diz ao Expresso.
Alemanha: trunfo derradeiro do Ocidente?
O chanceler alemão reúne-se esta terça-feira em Moscovo com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Olaf Scholz leva de Kiev promessas que fez na véspera ao chefe de Estado ucraniano: a Europa está comprometida com as expectativas ucranianas, ou com os seus “sonhos” de adesão à NATO e à própria UE, como descreveu o próprio Volodymyr Zelensky. “A visita de Scholz vai ser significativa, porque traz a Alemanha para o centro das discussões, remete para importância do eixo franco-alemão e pode querer dizer que a Alemanha, um pouco mais reticente anteriormente, está pronta para uma abordagem mais agressiva à Rússia”, afirma Freire.
A Alemanha tem relações comerciais importantes com a Rússia e tem-se negado a deixar que armamento que um dia lhe pertenceu seja enviado para Ucrânia, mesmo que esse material seja propriedade de países como a Estónia, que se disponibilizaram para ajudar Kiev a robustecer o seu arsenal bélico. O abastecimento de energia é o dossiê mais sensível. Se até Berlim está investida nestas diligências, Putin pode ter de se mostrar mais disposto a ouvir: o sector energético é fulcral para a sobrevivência da economia estiolada da Rússia. “Pode ser a derradeira oportunidade para que tudo se pacifique pela via diplomática. Pode ser que da relação de alguma cordialidade entre a Alemanha e a Rússia resulte uma margem de concessão mútua”, admite a académica.
2014-2022: sanções mais duras agora?
Em 2014, o mundo dos populistas parecia uma realidade distante da Europa. Deste então, episódios graves com a Rússia no papel de vilão contribuirão para erodir alguma confiança que se foi tentando construir durante os mandatos do Presidente americano Barack Obama. No topo da lista está a tentativa de subversão das presidenciais norte-americanas, confirmada por uma investigação da CIA. Foi a eleição que levou Donald Trump à Casa Branca. Seis meses antes o Reino Unido votara pelo ‘Brexit’.
VIDEO: 'Will it happen? Only Putin knows:' Ukrainians leave as possible invasion looms.
Both tourists and nationals check in at Kyiv airport as they fear for their safety with the standoff between Russia and the West continuing over Ukraine pic.twitter.com/nwHsj9U57S
Nos anos seguintes houve notícias como o envenenamento de Sergei Skipral, ex-duplo agente russo-britânico e da sua filha, Yulia, em Inglaterra, em 2018; os financiamentos à extrema-direita francesa; o feroz apoio à campanha de terror de Bashar al-Assad na Síria e, mais recentemente, nova tentativa de assassínio: a Alexei Navalny, opositor de Putin.
Raquel Freire não tem dúvidas de que “a situação é diferente e, na eventualidade de um pacote de sanções vir a ser aprovado, será certamente mais abrangente e com impacto mais substantivo”. Relembra que, em 2014, “a possibilidade de retirar a Rússia do sistema SWIFT de transações financeiras foi considerada demasiado agressiva. Agora, contudo, está em cima da mesa”.
Um membro do exército ucraniano em Donetsk, no leste do país, província ocupada por separatistas russos FOTO Getty Images
Por outro lado, a professora considera que a Rússia possui outros mecanismos para contornar sanções, por ter estado na mira das autoridades europeias e norte-americanas. Destaca “as reservas monetárias, uma tendência de ‘des-dolarização’ da economia e os elevados preços da energia, que permitem espaço de manobra”. Há ainda a questão da interdependência. “Uma política de sanções continuada teria efeitos muito sérios na Rússia, mas a dificuldade prende-se com os impactos no Ocidente, uma vez que a interdependência económica é uma realidade. A energia é sempre um dos exemplos avançados, e terá de se encontrar a fórmula de melhor acautelar efeitos indesejados”.
Nas manifestações populares de defesa da soberania da Ucrânia, que todos os fins de semana enchem as cidades, ouvem-se ucranianos, entrevistados pelas cadeias de televisão e agências de notícias em permanente reportagem no terreno, a a pedir “sanções pessoais” a Putin e ao seu círculo. Igual ideia defenderam ao Expresso cidadãos ucranianos residentes em Portugal.
A investigadora sublinha, porém, a falta de preparação da UE para um corte total de relações com a Rússia. “A UE tem apostado nas energias verdes e continua a ter contratos com países do norte de África. Veja-se o caso de Portugal, cujo fornecedor principal é a Argélia. Mas no contexto de elevada tensão que vivemos, e havendo escalada e imposição de sanções, é de esperar o corte imediato do abastecimento de gás russo à UE.”
A eterna questão da NATO
A principal exigência da Rússia é clara: que a Ucrânia não se torne membro da NATO. Não é algo que as potências ocidentais vão prometer. Além disso, convém não esquecer que a aproximação ao Ocidente, à NATO e à UE, está vertida na Constituição da Ucrânia desde 2019. Zelensky disse várias vezes que só vê um sentido no caminho do seu país. “Sabemos que a hipótese de adesão à NATO não está prevista a curto prazo, mas não me parece, ainda que houvesse um entendimento diplomático para garantir que este alargamento não se faria num determinado espaço de tempo, que ele fosse apresentado de forma tão crua à opinião pública”, diz Freire.
Manifestantes à frente da Universidade de Kiev, em protesto contra a Rússia FOTO: Aleksandr Gusev/SOPA Images/LightRocket via Getty Images
O que a reunião entre Scholz e Putin pode conseguir é criar mais uma bola de oxigénio para exercer a diplomacia. “As concessões terão de ser feitas de parte a parte. É óbvio que há na agenda política conjunta da NATO e da Rússia temáticas sobre as quais pode haver negociação, confluência de interesses: nos exercícios militares, na retirada do armamento que já está disponibilizado aos países europeus da Aliança Atlântica, etc. Se houver um desanuviar a esse nível, já poderemos contar com acalmia por mais algum tempo. Mas isto não é o que a Rússia pretende, o que a Rússia pretende é vedar à Ucrânia, e mesmo à Geórgia, a adesão à NATO”, explica Sónia Sénica.
Alguns analistas consideram que protelar a adesão ao máximo e oferecer essa certeza oficiosa à Rússia pode estar a ser ponderado como forma de afastar as tropas russas das fronteiras da Ucrânia – fronteiras no plural, porque há mais de 30 mil militares russos na Bielorrússia, sobretudo em zonas como Rechitsa (a cerca de 300 quilómetros de Kiev, mas a 150 da fronteira com a Ucrânia) e Gomel (cerca de 50 quilómetros da fronteira e 260 de Kiev), além dos batalhões e navios espalhados pela Crimeia e pelo Mar Negro, bloqueado com exercícios militares russos.
O embaixador ucraniano em Londres, Vadym Prystaiko, disse à BBC, segunda-feira que a Ucrânia pode ter de ser mais “flexível” em relação ao objetivo de pertencer à NATO: “Sim, podemos, sobretudo se continuarmos a ser chantageados e pressionados como temos sido”. Moscovo não demorou a concordar com o que depois se percebeu ter sido um erro do diplomata, que se desdisse: nada pode anular a Constituição da Ucrânia. “O embaixador incorreu num lapsus linguae, terá ali um desejo de pacificação e expressou-o. A frase é o que pretende, não exatamente o que pode vir a acontecer”, explica Sénica.
“Ingenuidade” e “descoordenação” ocidentais
Sentindo-se ignorada no furacão diplomático, que gira sempre à volta dos representantes ucranianos e não com eles, a Ucrânia exigiu no domingo uma reunião com a Rússia e os países participantes do Documento de Viena da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Sexta-feira, Kiev invocou o Documento de Viena sobre Redução de Riscos para exigir esclarecimentos sobre as atividades militares russas perto da fronteira, onde estão mais de 130 mil militares, segundo Washington.
“Invocamos oficialmente o mecanismo de redução de risco e exigimos que a Rússia forneça explicações detalhadas sobre as atividades militares nas áreas adjacentes à Ucrânia e à península temporariamente ocupada da Crimeia”, escreveu o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmitro Kuleba, na rede social Twitter. Sénica considera esta atitude “a ideal” por parte da Ucrânia, mas a data da suposta invasão, referida pelo próprio Zelensky num vídeo que publicou no Facebook depois de se encontrar com Scholz, veio transformar a narrativa – e não para melhor.
“Estas indicações da data podem melindrar a posição de Scholz. Parece-me surpreendente que Zelensky receba Scholz de manhã, um esforço diplomático, e ao final do dia afirme que a ameaça existe, é real, e até já está marcada para quarta-feira. Não faz muito sentido. Há uma certa ingenuidade na gestão da crise. Num primeiro momento pede socorro, depois diz que o pânico está a ser gerado por uma histeria ocidental, e agora que tem informações de que vai ser dia 16”. O mais flagrante para a especialista “é a falta de coordenação dos vários atores ocidentais”.
Já a Rússia “mantém-se a mesma, mantém as suas exigências”. Por isso, reforça a investigadora, “este encontro entre Putin e Scholz tem grande carga, grande peso, grande responsabilidade de poder ser o último momento decisivo para aliviar a situação”. Ao mesmo tempo, há ambiguidade na retórica russa: “Continuam a dizer que não querem invadir, mas os exercícios militares são muito robustos e as movimentações muito óbvias”.
Qual é o verdadeiro interesse da Rússia?
Poucos analistas subscrevem a hipótese da ocupação da Ucrânia pela Rússia. Até seria possível, dada a comparação entre militares e material de guerra disponíveis de um lado e de outro. A Sky News fez a recolha dos dados: a Ucrânia tem 209 mil militares no ativo, a Rússia 900 mil; a Ucrânia tem 858 tanques preparados para a guerra, do lado russo são 2840; quanto a aviões de combate, a Ucrânia tem 125, Moscovo comanda 1160.
Para Sénica, “o interesse da Rússia em invadir passaria sempre por fortalecer a autonomia das duas repúblicas separatistas na zona de Donbass”, no leste da Ucrânia. Do seu ponto de vista, “a ideia da Rússia seria dar apoio àquela população mais pró-russa, muito ligada à Federação Russa e que, diz o Kremlin, tem sofrido por isso”. Talvez Moscovo pudesse mesmo “organizar um referendo, como o que, na Crimeia, resultou num apoio da população à anexação”.
Há que avaliar ainda as condições para a invasão. “Segundo analistas militares, as condições militares não estão ainda reunidas em pleno, ou seja, ainda que haja capacitação e prontidão militar, as condições climáticas ainda não são ideais. ambiente é gelado, a circulação difícil, exatamente por isso. Com a primavera a aproximar-se, por via do degelo, as tropas e os veículos militares poderiam ter a vida facilitada.”