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Afeganistão: “Têm a minha palavra: enquanto não existir um ambiente islâmico, mulheres não poderão estudar ou trabalhar. Primeiro o Islão”

Um grupo de jovens numa feira do livro organizada perto da Universidade de Cabul no dia da mulher, 8 de março, em 2020
Um grupo de jovens numa feira do livro organizada perto da Universidade de Cabul no dia da mulher, 8 de março, em 2020
WAKIL KOHSAR/Getty Images

O novo reitor da Universidade de Cabul já fez a sua primeira promessa: nenhuma mulher poderá voltar a estudar até que novas regras para as instituições de ensino consigam criar um "ambiente islâmico" que permita o seu regresso. E que regras novas são essas? Quando vão ser apresentadas ou implantadas? As mulheres esperam uma resposta. Como as professoras também não podem ensinar, uma das soluções passa por colocar cortinas entre as alunas e os professores. Uma das principais ativistas do país falou com a CNN e deixou a tétrica pergunta: "Vão mesmo matar-nos a todos?". Ela diz "todos" e não "todas" porque acredita que muitos homens também já não querem este país

Afeganistão: “Têm a minha palavra: enquanto não existir um ambiente islâmico, mulheres não poderão estudar ou trabalhar. Primeiro o Islão”

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Depois de quase duas décadas em que qualquer pessoa podia frequentar os seus cursos, a Universidade de Cabul volta agora a proibir mulheres de estudar. O novo reitor escolhido pelo governo dos talibãs, Mohammad Ashraf Ghairat, disse na segunda-feira que as mulheres terão de esperar até que seja criado um “novo ambiente islâmico” antes de poderem voltar a estudar. “Dou-vos a minha palavra: enquanto não existir um ambiente islâmico para todos, as mulheres não poderão estudar nem trabalhar. Primeiro o Islão”, disse o recém-empossado responsável que tem sido alvo de críticas por não reunir a formação necessária para gerir uma instituição do ensino superior.

Prazos para a implantação desse “ambiente” ainda não são conhecidos mas, através do Twitter, Ghairat explicou que “devido à escassez de professoras”, o governo está a trabalhar num plano “que permita aos professores ensinar mulheres se elas estiverem escondidas atrás de uma cortina”. Desta forma, completou, “teremos um ambiente islâmico para que as alunas recebam educação”.

Numa entrevista à CNN, Mahbouba Seraj, diretora-executiva da Rede de Apoio a Mulheres do Afeganistão, explicou que, para uma mulher que viva no país neste momento, não há uma liberdade mais em risco que outra, tudo está em risco neste momento. “O problema não é um, é tudo, tudo está em disputa. Estamos a enfrentar uma situação em que somos detestadas pelo grupo que governa o país, eles nem sequer olham para nós, se fizermos uma pergunta eles viram-se para o homem para responder. Apenas mantenho a esperança porque não há exatamente uma outra opção”.

Seraj disse também que os talibãs “serão obrigados a importar-se” com as mulheres, porque o conhecimento adquirido por uma parte significativa da sociedade vai obrigá-los a prestar atenção às suas exigências. Até agora, poucas ou nenhumas provas têm sido apresentadas pelos talibãs que estejam a tentar afastar-se da reputação sanguinária que colheram entre 1996 e 2001, a última vez que governaram o Afeganistão.

Ministérios da Prece e da Luta Contra o Vício e Promoção da Virtude

As notícias de que as pessoas acusadas de roubo vão voltar a ficar sem a mão com a qual roubaram e outras que este fim de semana davam conta de cadáveres de alegados sequestradores pendurados em gruas e postes de electricidade no meio da cidade de Herat não conferem uma grande confiança à quem sonhava com um regime mais leve. Em outros desenvolvimentos, menos fisicamente violentos mas igualmente consequentes, o ministérios dos Assuntos das Mulheres foi dissolvido - nasceu, em seu lugar, os ministérios da Prece e o da Luta Contra o Vício e Promoção da Virtude.

Mahbouba Seraj continua convencida de que uma mudança é obrigatória, isto se o governo quer ter alguma hipótese de sobreviver. “Será possível governar o Afeganistão deixando de parte metade da população? Não são só as mulheres, os homens vão juntar-se à nossa luta, eu garanto que vão. Como é que os talibãs vão fazer isso? Nunca aconteceu no mundo, ter tanta população descontente e governar na mesma. As pessoas vão protestar, vão criar problemas. O mundo é muito pequeno agora”. E a violência que eles já demonstraram ser capazes de usar contra as pessoas, principalmente as mulheres, que decidiram ir para a rua em protesto? “O que é que vão fazer? Matar toda a gente? É isso que querem fazer no Afeganistão?”. A ativista deixa a pergunta no ar, mas o medo da resposta tem paralisado muitos outros críticos, jornalistas, ativistas, gente da cultura, professores e académicos: uns fugiram, os que ainda não conseguiram estão em casa.

As mulheres têm esconderijos e passam os dias a apagar das redes sociais as suas fotografias, as suas publicações em inglês, as suas opiniões dissonantes com a ideologia talibã. Se os novos responsáveis das instituições de ensino tiverem todos a opinião veiculada sem qualquer problema pelo novo reitor da Universidade de Cabul, vai ser difícil falar em “educação” das mulheres.

Alguns crentes muçulmanos com acesso aos meios de comunicação social têm-se esforçado por descolar as atitudes dos talibãs de algum tipo de pureza religiosa, ou sequer de alguma ligação ao Islão. Num texto para a Al Jazeera, Dahlia Mogahed relembra que a primeira universidade do mundo, nascida há mais de mil anos em Fez, Marrocos, nasceu pelas mãos de uma professora, Fatima al-Fihri.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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