Ex-conselheiro de Johnson arrasa preparação do Governo britânico para a pandemia em sete horas de audição. Acusações são (mesmo) graves
Dominic Cummings, já este mês, de volta a Downing Street
Henry Nicholls
O ex-conselheiro de Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, o homem que mais próximo esteve de todos os momentos que definiram a resposta do Governo britânico à pandemia apresentou-se esta quarta-feira perante os deputados britânicos. Durante sete horas respondeu a várias perguntas sobre as principais falhas de Johnson e dos seus ministros. Não ficou pedra sobre pedra. Dominic Cummings relembrou frases polémicas, acusou o ministro da Saúde de mentir constantemente e descreveu dias de caos absoluto num Governo que, acreditanto no conhecido mestre da comunicação por trás da campanha pró-Brexit, tinha uma folha A4 como plano completo para a contenção de pandemias
O Comité Especial de Saúde e Ciência da Câmara dos Comuns do Reino Unido, chamou esta quarta-feira para uma audição ex-conselheiro principal de Boris Johnson, Dominic Cummings, para o ouvir sobre o que correu mal nos primeiros dias da pandemia no Reino Unido. Cummings é uma testemunha privilegiada, muito próxima do primeiro-ministro britânico desde os tempos em que desenhou com sucesso os slogans e a estratégia para o referendo do Brexit, com acesso a todas as reuniões, e-mails, planos, mensagens, grupos de trabalho sobre o tema que, a acreditar naquilo que afirmou, quase toda a gente descurou até ser tarde demais. "Milhares de pessoas morreram e não tinham de morrer", é a frase que vai definir o pós-pandemia no Reino Unido - o veredicto está entregue pelos comentadores britânicos. Quem a proferiu foi mesmo Cummings, um dos homens mais odiados do Reino Unido, um populista que detesta o Parlamento e despreza as mais básicas regras institucionais.
Boris Johnson e Dominic Cummings, conselheiro-chefe do primeiro-ministro britânico
Tão próximo estava Cummings do centro da ação que ouvi-lo neste comité foi quase como estar dentro dos gabinetes onde tudo se discutiu, onde tudo não se decidiu. Isto claro, assumindo que Cummings está a falar a verdade e que não lhe passaria pela cabeça providenciar a uma comissão parlamentar este nível de detalhe, durante três horas, se os factos não tivessem qualquer adesão à realidade. Três horas depois, só o ministro da Saúde, Matt Hancock, visado com os piores ataques, tinha desmentido Cummings, mas já lá vamos.
“Os ministros, funcionários e conselheiros seniores como eu, todos ficámos desastrosamente aquém dos padrões que o público tinha o direito de esperar numa crise como esta”, resumiu Cummings, logo no início. Mas esta frase, que já contém um certo nível de gravidade, foi apenas o tiro de largada para muitas outras acusações. E não foram acusações feitas de generalidades: durante toda a audição, Cummings leu em voz alta mensagens que trocou com os mais altos dirigentes da nação, apresentou datas, horas, notas, quadros, gráficos e e-mails.
Por onde começar? Pelas mentiras que Cummings atribui ao ministro da Saúde, Matt Hancock - e que levaram a deputada Rosie Cooper a perguntar se os factos relatados poderiam configurar homicídio involuntário? Pela proposta, feita por um alto funcionário público, de que Boris Johnson fosse à televisão explicar a imunidade de grupo utilizando a analogia das “festas de varicela”? Ou por aquele dia em que, quando Cummings pediu o plano de contingência de pandemias, lhe apresentaram apenas uma folha A4? “Certo, isto é o comunicado de imprensa, mas onde está o plano de facto? Aquele plano, grande, a coisa toda?”, disse Cummings na audição, a fazer subir a mão a partir da mesa, o gesto internacionalmente reconhecido “pilha de papel”, relembrando o que disse na altura à pessoa que lhe apresentou “o plano”.
Ventiladores “demasiado caros” e material de proteção importado por via marítima
“Não havia um plano para confinar as pessoas, para a quarentena, para mapear os contactos, não havia uma linha de apoio porque foi decidido que estaria sempre entupida e, além de tudo isto, o sistema de compra de material para o SNS estava para lá de qualquer salvação”, disse Cummings. Os ventiladores estavam em falta por serem “demasiado caros” e o material de proteção individual iria demorar “meses a chegar ao Reino Unido”. Porquê? Porque vem num navio. E porque é que não vem por via aérea? “Porque sempre fizemos assim”, disse Cummings, citando a resposta que lhe foi dada pelo departamento responsável pela compra destes equipamentos. Neste ponto, Cummings não está a mentir. A permissão para comprar material “com extrema urgência”, contornando autorizações que seriam de outra forma necessárias de obter junto, por exemplo, do ministro das Finanças, só chegou aos serviços públicos envolvidos no combate à pandemia, segundo o Instituto Nacional de Auditorias, a 18 de março de 2020.
A ideia que fica, depois desta audição, é que durante muito tempo, até ao fim da primeira quinzena de março, não havia ninguém que estivesse realmente preocupado com a evolução da pandemia. Também é verdade que quase nenhum Governo do mundo, excepção feita à China e aos seus vizinhos, sabia por esta altura como controlar perfeitamente o microscópico terror, mas o que Cummings descreve é um outro tipo de impreparação - é saber da gravidade da situação e não fazer nada. “Ninguém no Governo estava com mentalidade de guerra, havia pessoas literalmente a fazer ski”. Johnson estava em Chevening, um enorme solar no campo, mas o Governo já negou várias vezes que o primeiro-ministro estivesse de férias, estaria a trabalhar remotamente.
A relutância de Johnson e a economia primeiro
A 12 de março, Cummings escreveu ao primeiro-ministro às 7h48 da manhã (mostra a mensagem) para lhe dizer que o gabinete que está a lidar com crise é "aterrorizadoramente péssimo” e que Johnson deve dizer às pessoas que tenham sintomas de gripe para ficarem em casa. Nada disso aconteceu. Mas nesse dia, ainda segundo o ex-conselheiro, o então Presidente dos Estados Unidos Donald Trump queria a atenção militar do Reino Unido para “um bombardeamento conjunto" no Iraque. Além desta distração, também nesse dia havia sido publicado no “Times” que a namorada de Johnson, Carrie Symonds, estaria a pensar em devolver ao canil o cão que o casal tinha adoptado, isto porque o bicho aparentemente estragou umas coisas no apartamento e fazia as suas necessidades fisiológicas um pouco por todo o lado. “Ela queria o gabinete de imprensa do Governo focado nessa história e estava histérica com coisas totalmente triviais”, disse Cummings.
É por este tipo de acesso ao dia a dia do Governo que a editora de política da Sky News, Beth Rigby, sem nunca deixar de referir os erros e os escândalos atribuídos a Cummings, não deixa de classificar o seu testemunho como "impressionante". Afinal não é todos os dias que um dos mais próximos conselheiros de um primeiro-ministro de um dos países mais poderosos do mundo diz, sobre esse mesmo governante, o seguinte: “É completamente absurdo que Johnson seja primeiro-ministro” e o acusa de se ter oferecido para ir levar uma injeção de covid-19 em direto na televisão porque "é como a gripe suína".
Mas se Symonds parecia ter as suas próprias prioridades, as do primeiro-ministro também não estavam focadas na pandemia. Cummings referiu várias vezes ao longo da audição que os principais membros do Governo de Johnson tinham muito mais medo do impacto económico das medidas de recolhimento do que propriamente do cenário de catástrofe na saúde pública. Segundo Cummings, Johnson queria ser como o presidente da câmara no filme “Tubarão”, que mantém a praia aberta apesar do perigo e que a pressão dos deputados conservadores e de alguns artigos de diários mais conservadores, como “The Telegraph”, tinham uma grande influência no primeiro-ministro, muito mais do que os alertas que no início de março já estavam a chegar ao Nº 10 de Downing Street sobre a capacidade real do SNS para lidar com um acumular de casos de covid-19.
Cummings confirmou, também, ter ouvido Johnson a proferir a frase: "Deixem os corpos empilhar aos milhares", que fez manchetes nos jornais há cerca de dois meses e que Johnson terá proferido, em outubro de 2020, para reforçar a sua feroz oposição a mais um confinamento.
A questão da imunidade de grupo e as alegadas mentiras de Hancock
Como seria de esperar, a audição caminhou rapidamente até à parte de que toda a gente se lembra: a aposta do Governo britânico, numa fase inicial, na teoria da imunidade de grupo.
“Portanto, a lógica originalmente era a seguinte: a covid chegaria e haveria um pico agudo. E achavam que o público não aceitaria um bloqueio. Então a escolha passou a ser entre um pico único e muito acentuado; ou dois picos, com o segundo no inverno, o que seria pior. Ninguém queria ver estes cenários, claro, mas na altura o que o Governo pensava é que não tinha hipótese de os evitar: ou atingiríamos a imunidade coletiva em setembro, após um único pico, ou em janeiro de 2021, após um segundo pico. Até 13 de março, era essa a assunção no Governo”, disse Cummings. Ora, a 15 de março, Matt Hancock disse ao país que havia um plano traçado e que a imunidade de grupo não fazia parte dele. O ex-ministro da Saúde, Jeremy Hunt, pergunta então: “Hancock estava errado?”. E Cummings responde: “Totalmente errado”.
Lee Cain, ex-diretor de comunicação de Boris Johnson
Cummings é da opinião (e diz que Boris Johnson e outros funcionários públicos com cargos de chefia concordam com ele) de que Hancock poderia ter sido despedido por “20 coisas diferentes”, incluindo por “mentir a toda a gente várias vezes, incluindo em várias reuniões do gabinete de ministros e em declarações públicas”. Alertado pela gravidade das acusações, o presidente do comité, Greg Clark, pede exemplos destas mentiras. “No verão, Hancock disse que toda a gente estava a receber o tratamento que precisava, fosse para um cancro ou uma criança com a perna partida, mas ele tinha sido informado pelo principal conselheiro científico e pelo principal conselheiro para a área da saúde que as pessoas de facto não estavam a receber o cuidado necessário”, disse Cummings.
Além disso, houve outras mentiras relacionadas com a quantidade de material de proteção individual existente no fim de março. Hancock assegurou que o stock estava assegurado, depois verificaram-se falhas no fornecimento e o ministro acabou por culpar o Ministério das Finanças por não ter libertado fundos e o diretor do SNS. “Tem notas tiradas na altura nestas reuniões?”, perguntou o presidente do comité. “Tenho, sim”, disse Cummings, prometendo entregá-las para análise.
"Rejeitamos totalmente as alegações de Dominic Cummings sobre o ministro da Saúde, que continuará a trabalhar em estreita colaboração com o primeiro-ministro para consolidar o programa de vacinação, enfrentar os riscos apresentados pelas novas variantes e apoiar o SNS e o setor de assistência social na recuperação desta pandemia”, disse um porta-voz de Matt Hancock num comunicado citado pela BBC.
Festas de varicela
A certo ponto, o mais experiente de todos os conselheiros destacados para aconselhar o Governo em questões de funcionamento dos serviços públicos, Mark Sedwill, disse ao primeiro-ministro que seria boa ideia ele ir à televisão descrever o coronavírus como a nova varicela e que o plano para a imunidade de grupo seria como as “festas da varicela”, eventos em que pais que não confiam em vacinas juntam os seus filhos para que estes desenvolvam varicela e se desenvolvam naturalmente anticorpos, o que ainda acontece no Reino Unido, onde a cobertura da vacina ainda não atinge 100% das crianças. Cummings disse que desencorajou o uso da analogia e avisou que este vírus estava a espalhar-se exponencialmente e que havia “milhares de pessoas a morrer”. Naquele momento.
No dia 16 de março, pela primeira vez, Boris Johnson pede às pessoas que fiquem em casa, algo que Cummings diz que lhe pediu que fizesse antes mas não tão antes como deveria ter feito. Ao longo das primeiras três horas de audição, pediu várias vezes desculpa por não ter “pressionado o botão de pânico” mais cedo.
Cummings está longe de ser uma espécie de alma pura no meio da putrefação política de que acusa os ministros de Johnson. Porque não denunciou tudo isto antes? Porque é que não pediu desculpa antes? Isto é verdade ou é uma forma de vingança contra as pessoas que acabaram por o afastar do poder? Tudo isto lhe foi perguntado e as respostas não foram muito conclusivas. Quanto ao atraso na denúncia, Cummings disse que estava ainda a tentar “mudar por dentro” o comportamento do Governo; no que toca ao facto de não ter pedido desculpa antes pelo seu papel nisto tudo, o ex-conselheiro lembra que na altura ele e a sua mulher estiveram gravemente doentes (“Cheguei a sentar-me na cama a escrever o testamento”, disse esta manhã) e que tiveram mudar de casa duas vezes devido a ameaças de morte. Cummings negou que estivesse na audição por motivos pessoais.
Pouco depois, Johnson disse na sessão quinzenal de perguntas ao primeiro-ministro no Parlamento, que não tinha tido oportunidade de ver o testemunho de Cummings - defendendo-se mesmo assim. "Lidar com esta pandemia foi uma das coisas mais difíceis que este país teve que fazer em muito tempo e nenhuma das decisões foi fácil", disse ele. “Entrar em confinamento é uma coisa traumática para o país e resolver problemas desta escala tem sido terrivelmente difícil. Temos tentado salvar vidas, proteger o SNS e seguido os melhores cientistas que conhecemos.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail:afranca@impresa.pt
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