Quando o secretário-geral da ONU se referiu na passada quinta-feira às crianças de Gaza, ainda o cessar-fogo entre Israel e o Hamas não passava de um rumor. "Se há um inferno na terra, está na vida das crianças de Gaza", disse António Guterres, e não por acaso. Um quinto dos mortos do território, isto é, 66 dos 243 palestinianos mortos no confronto armado são menores.
A quantidade de famílias que ficaram mutiladas nos 11 dias de bombardeamentos de Gaza por Israel só se equipara com o grau de destruição da própria cidade. "À medida que emergiam dos refúgios, os habitantes de Gaza tiveram de adaptar as suas memórias. Tão desfigurado está este pequeno lugar na costa que um mapa mental das suas estradas e pontos de referência é hoje imensamente inútil", escreve o enviado do "The Guardian" à cidade, Oliver Holmes.
O balanço da destruição demonstra que as palavras do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu sobre a tentativa de Israel de "não atingir" civis não podem ser levadas a sério. Aliás, segundo o jornalista, "provocariam o sarcasmo", por exemplo, daqueles que sobreviveram aos bombardeamentos da al-Wehda, a principal avenida no centro de Gaza. Só o último, considerado o mais letal, matou 42 pessoas.
Além dos 1900 feridos, a ONU contabiliza 260 edifícios arrasados ou danificados, entre os quais 33 escolas, seis hospitais e 11 centros de saúde. A clínica Al Rimal, a única que efetua a testagem de Covid-19, ficou inutilizada, numa altura em que a doença está longe de controlada no território. Há cerca de 80.000 deslocados internos numa faixa de território de pouco mais de 300 km quadrados que alberga uma população de 2 milhões, e que há 14 anos é alvo de um bloqueio por parte de Israel e do Egito — que a própria ONU vê como um "castigo coletivo".
É por esta razão que o líder da Oxfam em Israel já veio afirmar que o cessar-fogo está longe de ser uma solução: "A trégua armada não muda a ocupação ilegal e a negação dos direitos humanos a que os palestinianos estão sujeitos diariamente. Este status quo desumano tem de mudar", declarou Shane Stevenson, notando que tanto Israel como as fações armadas de Gaza têm de ser responsabilizadas "pelas atrocidades cometidas nos últimos 11 dias".
Em Gaza, o cessar-fogo deixou um rasto morte e destruição, mas também de trauma. "As crianças já não querem ir sozinhas à casa de banho. Têm medo de tudo", relatou ao "El País" Ignacio Casares, chefe de missão do Comité Internacional da Cruz Vermelha na Faixa de Gaza. "Os meus colaboradores locais contam que, à noite, duvidam se é melhor dormir como todos os filhos juntos, para morrer todos de uma vez no mesmo ataque, ou separados em grupos, para salvar pelo menos uma parte da família."
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