“Há 80 mil milhões de dispositivos nos EUA; dentro de 30 anos, alguns deles vão querer votar”. Zoltan Istvan, transhumanista
Dong Wenjie/getty
O que faz um transhumanista? Aponta os caminhos que a humanidade vai trilhar até que carne, ossos, implantes e algoritmos criem um novo ser político, que recorre às máquinas para governar melhor - mesmo quando passa a representar as maiores marcas de tecnologias. Foi isso que Zoltan Istvan, outrora líder do Partido Transhumanista norte-americano, foi dizer na convenção republicana, afrontando Donald Trump e um sem número de pessoas que não pensam em ciência
Zoltan Istvan, antigo jornalista da "National Geographic", conta como decidiu abraçar a causa transhumanista para tentar levar o Partido Republicano a pensar em ciência, ciborgues e governos suportados por inteligência artificial. Na última convenção do Partido Republicano ousou disputar o palco e protagonismo do previsível nomeado a candidato presidencial, Donald Trump, para assumir o papel de arauto que, para a maioria, parece ficção, mas que para os transhumanistas são uma realidade que se vai concretizar a prazo – e que nalguns casos já começou a mudar a forma como homens e mulheres prolongam a vida, olham para os seus corpos ou exercem o poder sobre os outros.
“Há 80 mil milhões de dispositivos eletrónicos nos EUA; dentro de 10, 20 ou 30 anos, alguns destes dispositivos vão desenvolver consciência e vão querer votar”, prevê Zoltan Istvan, que é conselheiro do Partido Transhumanista americano. Numa convenção em que o boa parte dos participantes não pensam em ciência, Istvan dificilmente escapa ao epíteto de “maluco”. O antigo jornalista não se assusta, e prefere dar a ideia de que ter razão antes do tempo não deve ser confundido com estar do lado errado da História. Até porque se não forem os humanos de carne e osso a darem-lhe essa razão, poderá haver quem no futuro recorra à inteligência artificial para reescrever a História – e governar o mundo inteiro.
O que o levou a concorrer a candidato presidencial do Partido Republicano? Já desistiu do transhumanismo?
Não, não desisti do transhumanismo, nem do Partido Transhumanista. Na América, apenas os candidatos dos partidos Democrata e Republicano têm poder, dinheiro, ou até capacidade para serem eleitos presidentes, devido à forma como o sistema de votos por Estado funciona. No meu caso, concorri apenas para dar a conhecer novas visões sobre a tecnologia. E fiquei em sexto lugar… não foi mau! Mas foi apenas para levar os republicanos a pensar um pouco mais em ciência. Eles não são conhecidos por pensarem muito em ciência.
A administração de Donald Trump não pensa em ciência?
Não tenho dúvidas de que não pensam em ciência. Essa foi uma das razões pelas quais me candidatei. Tentei ser um cavalo de Troia para dizer ao Partido Republicano: “olhem, não seria bom que este grupo de pessoas começasse a pensar mais em ciência? Não importa se são as alterações climáticas, ou se é o transhumanismo… até podem ser coisas como a cura do cancro. Tipicamente, os conservadores americanos são anti-ciência. E eu quis levá-los a pensarem mais em ciência e, talvez, até a apoiarem a ciência. Não sou um republicano. Até sou mais próximo dos democratas; sou alguém que gosta de ciência – mas metade da América não gosta.
Parece um paradoxo, mas foi a ciência que criou ferramentas e tecnologias que têm sido usadas para dar poder a quem não acredita na ciência.
É verdade. É irónico e também contraditório. Na América, os republicanos são, regra geral, mais ricos que os democratas. E têm mais dinheiro para gastar em ciência. Quando digo dinheiro para gastar em ciência, quero dizer que os republicanos podem ser muito prestáveis para tentar curar o cancro, a velhice, ou as diabetes, e poderiam ajudar a levar o movimento transhumanista em frente, mas como são muito religiosos, acham que o transhumanismo representa o mal, como se fosse contra a religião. Tentei mostra-lhes que não é assim. Todas as pessoas podem fazer dinheiro e ajudar a humanidade (com a ciência e o transhumanismo). Podemos ser ativistas da ciência e apoiar a ciência sem abdicar de princípios e valores.
Quais foram as reações da convenção? Trataram-no como um candidato convencional ou como um louco?
Diria que a 50% acharam que era maluco. Mas muitos jovens republicanos realmente apreciam-me. E foi dos jovens que vieram os meus votos. Mas parece-me que os republicanos mais velhos devem ter achado que estava a falar de coisas malucas, quando falava de realidade aumentada, ciborgues, ou vencer a morte com a ciência…
Donald Trump, no primeiro dia da convenção do Partido Republicano
FOTO EPA
Depois dessa experiência, voltou ao Partido Transhumanista?
O Partido Transhumanista teve os seus próprios candidatos a presidente e a vice-presidente nestas eleições, mas é mesmo muito complicado concorrer contra Joe Biden ou Donald Trump em termos mediáticos, acesso aos boletins de voto… Não há sequer comparação possível, e o Partido Transhumanista não tem sequer capacidade de marcar a diferença na atualidade. Mas há que lhe dar tempo. Na Europa, também vimos o Partido Pirata e outros partidos pequenos que cresceram rapidamente. Se a tecnologia continuar a evoluir, o Partido Transhumanista também vai acabar por crescer muito rapidamente. Acredito num grande futuro para o Partido Transhumanista… só não o vejo a ganhar eleições nos próximos quatro anos! Vai demorar mais tempo.
Se um ciborgue votar noutro ciborgue, poderemos considerar que se está a respeitar o sistema de “uma pessoa, um voto” que pode eleger qualquer pessoa? Ou será que devemos considerar que aquele voto vem de uma máquina e é uma máquina que vai ser eleita?
Tenho lido alguns artigos sobre este tema, relacionado com a possibilidade de ter uma presidência de inteligência artificial. Há uma probabilidade considerável de virmos a ter um algoritmo que gere a sociedade em várias áreas, em vez de uma pessoa como Donald Trump, que tem, e é essa a minha opinião, sentimentos. Toda a gente é humana, logo ninguém pode ser perfeito. Mas há uma boa probabilidade fazer máquinas perfeitas. Por isso, acredito que, no futuro, haverá a possibilidade de vir a ter máquinas políticas, ou de ter um presidente da câmara (feito) de inteligência artificial. Há 80 mil milhões de dispositivos eletrónicos nos EUA; dentro de 10, 20 ou 30 anos, alguns destes dispositivos vão desenvolver consciência e vão querer votar. E há várias contradições enormes que surgem se decidirmos dar consciência da inteligência artificial e o poder de voto a estes dispositivos. Claro que isto é quase ficção científica, mas dentre de 20 ou 30 anos já não será ficção científica. Por isso, convém ir pensando na matéria. Não sei se os robôs vão votar, mas seguramente que a Política vai mudar dentro de 20 anos com base nestas ideias – para bem e para o mal.emos a melhor tecnologia.
Zoltan Istvan compara o risco de ciberataques a um presidente ciborgue com os riscos inerentes à influência que políticos exercem entre si
Se calhar, nessa altura as eleições passam a ser disputadas entre candidatos de inteligência artificial da IBM contra presidentes de Inteligência artificial da Microsoft… e quem diz estas marcas diz outras quaisquer! Será que ainda se poderá chamar democracia a este sistema?
Isso já está a acontecer um pouco isso, com todos os lóbis que existem nos EUA. Temos grupos do petróleo que apoiaram o Trump; e outros grupos que apoiaram Biden. Dificilmente se consegue dizer que presidente tem mais apoio em Wall Street… em 2016, houve aquele projeto da IBM que permitia debates com o (supercomputador) Watson da IBM… chegou a haver um site a propor que o Watson se candidatasse a presidente, mas não era promovido pela IBM. Já temos uma IA que consegue argumentar, que responde e fala, e que até diz que se candidata a presidente. Estamos a chegar a uma era em que será difícil saber quem controla a Inteligência Artificial (IA). Imaginemos que a Microsoft controla a IA que se candidata a presidente… ou melhor, digamos que é a Facebook – será muito assustador! As pessoas já têm medo da Facebook. Tem de haver alguma independência dos poderes corporativos. Pessoalmente, não quero que uma única empresa controle a política. Ficaria preocupado que tentasse fazer dinheiro comigoa todo o momento. Quero um político que tenha como objetivo o meu bem-estar.
A IA não tem sentimentos, arrependimentos, ambições ou até princípios… serão essas características adequadas para criar um político que cuida da humanidade?
Acredito que até pode ser melhor que a maioria dos políticos, porque não tem o mesmo tipo de falhas que as pessoas têm. Mas os programadores já podem programar princípios. Muitos algoritmos já têm o cuidado de fazer o melhor que sabem para o bem estar das pessoas. Por exemplo, os semáforos. Tenta-se criar (com algoritmos) os melhores fluxos de tráfego para que as pessoas possam ir para onde querem. Em termos de impostos, desenvolvimento de políticas, defesa, a IA pode fazer essas coisas de forma muito simples. Se o objetivo for não entrar em guerra, então torna-se bastante simples… e a IA, se calhar, consegue fazer melhor isso que alguém como Donald Trump, que tem a fama de arranjar problemas, ou mesmo Joe Biden que tem uma longa história de encorajamento de guerras… Temos de tentar criar um mundo melhor, mas pode não ser só com IA. Pode haver uma combinação entre IA e humanos. Posso garantir que um político, dentro de 10 ou 20 anos, estará conectado à cloud (a repositórios de dados e computadores ligados na Net), talvez com algo parecido com os chips neuronais que foram mostrados pelo Elon Musk… e possivelmente, dentro 30 anos, a decisão política será tomada através de uma mente humana parcialmente conectada a sistemas de IA e, parcialmente, conectada a sistemas que recolhem informação das opiniões. Posso garantir que, dentro de alguns anos, haverá este tipo de acessos… e mesmo quando esses políticos estiverem a debater, provavelmente, usarão capacetes (com tecnologias) ou terão implantes… ou pelo menos acesso a este tipo de informação. Claro que vamos debater se queremos ou não ter um presidente que é um ciborgue. A verdade é que isso poderá fazer do presidente melhor orador, mais funcional, mas acho que a maioria das pessoas não vai querer isso…
Por outro lado, há sempre o risco desse presidente ciborgue, na verdade, não ter realmente descarregado o programa político para que foi eleito e estar a usar um programa diferente…
Têm de ser criados limites de segurança. Tal como acontece com as armas nucleares. Há 25 mil armas nucleares dispersas pelo mundo, sendo que 15 mil estão ativas … e essas armas podem destruir cidades inteiras. Mas isso não tem acontecido. Sim, há o risco de um presidente ser alvo de ciberataque – mas isso não é muito difícil do que se passa com os seres humanos na atualidade. Sim, é possível Vladimir Putin influenciar Donald Trump, tal como é possível fazer um ciberataque a um ciborgue. Mas acho que isso é mais teoria da conspiração. No mundo real, as pessoas vão escolher pessoas para representar os países, com o objetivo de fazerem um bom trabalho. Terá de haver sempre proteções; cibersegurança, especialistas que ajudam a tomar decisões de forma autónoma… quando se fala de ciberataques, não me parece que seja muito diferente daquilo que se passa hoje com a influência e o mundo corporativo. Podemos preocupar-nos com muitas coisas, mas acho que não vale a pena preocupar-nos muito com os ciberataques.
O supercomputador Watson chegou a gerar um primeiro movimento de candidatura de uma máquina à presidência dos EUA. No futuro, é possível que os candidatos recorram à inteligência artificial para a tomada de decisão
Não são só os presidentes que vão usar tecnologias. Um estudo recente da Kaspersky refere que a maioria dos portugueses está interessada em usar tecnologias que aumentam a cognição e as capacidades físicas… tendo em conta o que se passou com as redes sociais, como podemos garantir que as nossas decisões apoiadas pelas tecnologias continuam a ter por objetivo os nossos benefícios?
Estive em Silicon Valley, na Califórnia, e vi que há gente a trabalhar em implantes que controlam o nosso comportamento. Hoje, temos dois milhões de presidiários. Há pessoas que acreditam que, se essas pessoas tivessem implantes ou usassem capacetes (tecnológicos), poderia ser possível tornar essas pessoas melhores… ou se se alterasse os genes que levam a que essa pessoa se torne uma assassina. É algo que é muito possível. Imagine que alguém está condenado à morte… e que, em vez de se executar a sentença de morte, se diz: “tem aqui um implante que o torna uma melhor pessoa”. Isto pode ser um pouco autoritário e até ficção científica, mas seguramente que a tecnologia estará disponível dentro de cinco a dez anos… em vez de uma droga que pacifica as pessoas, passa-se a ter implantes que pacificam pessoas. Temos implantes em todo o mundo para idosos, para doenças neurológicas, e que sabem usar os impulsos na cabeça de cada pessoa para tornar a pessoa mais saudável. Há mesmo movimentos que pretendem (usar estas tecnologias) para educar pessoas. Se calhar, dentro de 20 anos, poderemos passar a aprender com capacetes e implantes. Imagine que quer tornar-se bombeiro. Então vai passar a ter acesso a todos os conhecimentos que existem sobre o combate a incêndios que está na Cloud… com essa base de IA, a pessoa passa a saber como apagar fogos. Isto é certamente o futuro. Se os portugueses querem este tipo de novo mundo; então é possível que toda a humanidade acabe por seguir esse caminho pelo simples motivo de ser mais funcional. Hoje, estamos aqui a conversar através de computadores e iPads… mas é muito possível que dentro de alguns anos – e já estão milhões de dólares nisso em experiência do género – se façam conversações e podcasts apenas no cérebro. Já há alguns avanços e acredito que haverá ainda mais. Comunicar com as ondas do cérebro através de tecnologias é algo real, e vai ser aceitável, quando as pessoas usam essas soluções para serem melhores profissionais ou para contribuírem para a prosperidade. É algo que vai mesmo acontecer. Depende apenas da resistência que vai gerar.
Talvez, nessa altura, haverá uma minoria que tem todos direitos e capacidade, enquanto há uma larga maioria que é “apenas” humana e não tem capacidades aumentadas… Não será também uma ameaça à democracia?
Provavelmente, é algo que vai começar por acontecer no início… mas até os mais pobres têm acesso às tecnologias passado tempo. O que receio é que os super-ricos usem a tecnologia para aumentar as diferenças entre quem tem e quem não tem tecnologias. Mas parece-me que as forças do mercado vão acabar por levar as tecnologias para toda a sociedade. Claro que há pessoas que vão continuar a resistir, porque querem viver sem tecnologias. Mas é o que temos hoje no mundo empresarial: se uma pessoa não está nas redes sociais ou não tem carro… não entra nesse mundo. Agora parece estranho alguém ter o cérebro conectado à Cloud, mas dentro de 20 anos quem não o fizer possivelmente terá de abdicar de algo… do trabalho, da comida para a família… vai ser necessário ter este tipo de coisas.
Mais um pouco e estamos a imaginar constituições e estados que dizem que todas as crianças têm direito a implantes…
Não defendo que deva ser forçado. Mas, neste momento, 300 mil crianças surdas, e a quem lhes foram dados implantes pela segurança social para que possam ouvir. A maioria dos pais querem que tenham esses implantes para que as crianças possam ouvir. Claro que há 10% a 15% que dizem: “nunca vou deixar que ponham um implante na minha criança; vai viver no mundo surda!” Esses 10% de pessoas existirão sempre, enquanto as restantes crianças vão crescer normalmente com capacidade de ouvir coisas. Gostava que a sociedade não fosse obrigada a usar chips; quero ter o direito a usar um chip, mas não quero que me forcem a usá-lo. Ter uma sociedade livre é talvez a coisa mais importante que poderemos ter com o transhumanismo.
Portanto, o transhumanismo não é uma ameaça para o mundo livre?
Claro que não. Acredito que vai tornar mais transparente e melhorar a democracia. Provavelmente, quando tivermos uma democracia digital poderemos votar em tempo real e a pedido – mas agora só podemos votar de quatro em quatro anos, ou de seis em seis anos… é possível que a democracia se torne mais rápida a partir do momento em que passarmos a ter acesso à tecnologia 24 horas por dia. A democracia vai evoluir para algo mais complexo à medida que a tecnologia melhora.
De qualquer modo, para essas previsões se tornarem reais, convém que diferendos como aquele que separa China e EUA seja superado…
Sim. A China está a liderar o mundo em termos de transhumanismo e tem uma cultura bem diferente da Europa ou da América… trata-se de uma nação comunista e acredita no controlo das pessoas, enquanto a Europa e os EUA acreditam em liberdade. É bom que tornemos os nossos chips e o nosso softwares melhores que os deles para que possamos manter a nossa liberdade. Se queremos que a democracia sobreviva, temos de garantir que temos a melhor tecnologia.