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Lei que pode alterar partes do acordo do Brexit passa primeiro obstáculo no Parlamento britânico

Lei que pode alterar partes do acordo do Brexit passa primeiro obstáculo no Parlamento britânico
Jack Taylor/Getty Images

É um projeto de lei controverso. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, quer ver aprovada a chamada Lei do Mercado Interno, que daria aos seus ministros poder para interpretar a seu gosto o acordo de saída do Reino Unido da UE, alcançado entre o Reino Unido e os 27 restantes Estados-membros e que tem o valor de um tratado internacional. O projeto passou na generalidade com 340 votos favoráveis (uma maioria de 77), mas ainda pode ser sujeito a emendas

Em atualização

A Lei do Mercado Interno, que daria aos ministros britânicos a possibilidade de virem a alterar partes do tratado internacional que regula o Brexit, passou na generalidade esta segunda-feira à noite, mas a discussão ainda mal começou e ultrapassa bastante os limites da Câmara dos Comuns.

A primeira coisa que é preciso esclarecer é que o acordo que que quase toda a gente conhece como sendo o “do divórcio” entre o Reino Unido e a União Europeia não é uma lei britânica, tornou-se um tratado internacional quando foi aprovada pelo Reino Unido e pelos 27 restantes membros da União Europeia. O primeiro-ministro britânico já era então Boris Johnson, que agora quer alterar o documento ou, pelo menos, a sua aplicação.

O artigo 4.º desse tratado estipula que o que está escrito nas suas linhas se sobrepõe, em termos legais, a qualquer lei “doméstica” britânica que se debruce sobre os assuntos abrangidos pelo tratado.

A controvérsia gerada nos últimos dias advém da intenção de Johnson de fazer passar um projeto de lei para regular o mercado interno que, a tornar-se lei, vai contra esse tratado internacional. O Reino Unido estará, desde o momento em que aprove tal projeto, a violar um tratado internacional.

Em causa está, sobretudo, a possível quebra do protocolo para a Irlanda do Norte, que visa evitar uma barreira física entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (parte da UE) enquanto estabelece, ao mesmo tempo, um controlo alfandegário no Mar da Irlanda que possa garantir, para os consumidores europeus, que tudo o que chega do Reino Unido cumpre as exigências de qualidade vigentes no mercado único.

Ora, o que Johnson pretende com a nova lei é poder aligeirar essas verificações, mas não só. O acordo de saída prevê a aplicação de tarifas europeias a bens que, viajando da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte, possam ter como destino final a UE, mas Johnson pretende que seja apenas o Governo britânico a definir que bens correm esse “risco”. Por fim, quer reduzir as limitações que a UE coloca às ajudas estatais e que, segundo o acordo de saída, continuariam a aplicar-se à Irlanda do Norte após o período de transição.

O parágrafo 42 da proposta de lei já aprovada na generalidade intitula-se mesmo “poder para desaplicar ou modificar as declarações de exportação e outros procedimentos de saída”, conferindo aos ministros britânicos competência para decidir a que inspeções (se é que algumas) sujeitar os bens em circulação, quando se previa que tal fosse decidido em conjunto com a UE. “Um ministro da Coroa pode, através de regulamentação, dispor sobre a aplicação de procedimentos de saída a bens, ou uma descrição dos bens que circulam da Irlanda do Norte para a Grã-Bretanha”, lê-se no texto. O objetivo é o “acesso desimpedido” de tais bens às diferentes partes do Reino Unido.

Esta ideia de Johnson tem sido usada principalmente pela oposição (mas já há um número significativo de conservadores que se opõem à sua aprovação) para pôr em causa as intenções de Johnson em cumprir os compromissos assumidos pelo Reino Unido junto de países terceiros com quem tenciona manter ou fomentar relações comerciais no pós-Brexit. O seu raciocínio é: se Londres violar o que combinou com Bruxelas, que razão terão os demais países para confiar em possíveis acordos comerciais com o Reino Unido pós-Brexit?

O protocolo sensível explicado

O protocolo para a Irlanda do Norte é uma das partes centrais do acordo de saída do Reino Unido da UE e é sensível porque é crucual evitar o regresso de uma fronteira física entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, algo que vários especialistas temem poder fazer regressar os dias negros dos ódios religiosos dos anos 60, 70 e 80. Só em 1998 terminou o conflito armado entre protestantes unionistas (que querem que a Irlanda do Norte permaneça no Reino Unido) e católicos republicanos (partidários da reunificação da ilha num só Estado).

Uma barreira física seria alvo de extremistas, tanto protestantes como dos católicos. Dado o sofrimento causado por 30 anos de guerra, nem a UE nem nenhum partido britânico se opôs, na altura das negociações, a este princípio. Ele é basilar no Acordo de Sexta-Feira Santa, assinado há 21 anos para trazer paz à região.

O problema surge quando é preciso implantar tudo quanto sustenta o princípio. É que os cerca de 400 quilómetros que separam as duas Irlandas são a única fronteira terrestre entre o Reino Unido e a UE. Segundo o protocolo, a Irlanda do Norte vai continuar a seguir as regras e as exigências de qualidade do mercado único que vigoram nos restantes países da UE. Tal faz com que seja desnecessário qualquer controlo fronteiriço entre os dois países depois de 1 de janeiro de 2021.

Porém, de forma a que os produtos que cheguem da Grã-Bretanha (a grande ilha onde ficam Inglaterra, Escócia e País de Gales) em direção à Irlanda do Norte (e depois à República da Irlanda) cumpram todas as regras da UE a ideia é adotar controlos de qualidade e alfandegários no Mar da Irlanda, a porção de água que fica entre a Grã-Bretanha a ilha da Irlanda. São necessários para, por exemplo, cobrar tarifas sobre quaisquer produtos que tenham com destino último a UE ou verificar a qualidade das mercadorias (especialmente bens alimentares).

UE já não esconde desagrado

Se a UE e o Reino Unido não conseguirem chegar a acordo sobre este e dezenas de outros pontos espinhosos, ao fim do túnel não estará nada, apenas o infame “no deal”, ou seja, a saída do Reino Unido da UE sem relação comercial com os parceiros europeus. As trocas passariam a realizar-se sob as regras da Organização Mundial do Comércio, bem mais desfavoráveis do que as que vigoravam enquanto o Reino Unido esteve na UE (e que ainda se aplicam até final do ano, por se estar em período de transição).

É aqui que a nova lei do mercado interno entra em ação. A reação europeia não se fez esperar e, como se previa, foi de rejeição total das intenções de Londres. A Comissão Europeia ameaça levar o Reino Unido a tribunal se este não mudar de posição “até ao final do mês”.

“Para que haja qualquer relação futura entre a UE e o Reino Unido tem de haver confiança mútua, hoje e no futuro”, reforçou o negocia­dor-chefe europeu, Michel Barnier, depois da oitava ronda de negociações, que, como as anteriores, foi classificada de “infrutífera” pelo francês, que aconselhou os Estados-membros a prepararem-se para um cenário de “não acordo”.

“O Reino Unido recusa-se a incluir garantias indispensáveis de concorrência leal no futuro acordo, ao mesmo tempo que solicita o livre acesso ao nosso mercado interno”, disse ainda Barnier, queixando-se de “falta de garantias importantes de não agressão dos padrões sociais, ambientais, laborais e climáticos”. A presidente da Comissão Europeia também se mostrou desagrada: “Estou muito preocupada com o anúncio do Governo britânico sobre a intenção de violar o acordo de saída”, escreveu Ursula von der Leyen na rede social Twitter.

As justificações de Boris Johnson

O primeiro-ministro disse que a legislação era necessária para evitar que a UE fizesse uma interpretação “extremada e irracional” das disposições do acordo de saída, principalmente no que diz respeito à Irlanda do Norte. O governante especulou que Bruxelas está a ameaçar “bloquear” as exportações agroalimentares do Reino Unido para a UE e a insistir na imposição de tarifas sobre todos os bens que se deslocam do resto do Reino Unido para a Irlanda do Norte. Vários porta-vozes da UE e dirigentes políticos irlandeses já vieram negar que assim seja.

Vozes importantes da política britânica, incluindo os últimos cinco primeiros-ministros do país, três dos quais do Partido Conservador, expressaram desconforto com a decisão de Johnson, mas este não desarma. “É uma proteção, uma rede de segurança, uma apólice de seguro e é uma medida muito importante”, contrapôs esta segunda-feira, no debate que antecedeu a votação.

Terça-feira começa a análise do projeto de lei em comissão. O debate na especialidade e as respetivas votações deverão prosseguir na próxima semana. Há deputados que já anunciaram ir propor emendas às disposições da Irlanda do Norte, contra a vontade do primeiro-ministro. E alguns parlamentares conservadores podem mesmo apoiar tais ideias.

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