Internacional

“‘Otimista’ é capaz de ser palavra forte para quem foi atacado com bombas durante três meses”: capítulo VIII de “Um Desastre Humanitário”

Campo de Deir Hassan, na província de Idlib. Vivem ali cerca de 120 mil pessoas deslocadas, segundo números da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras.
Campo de Deir Hassan, na província de Idlib. Vivem ali cerca de 120 mil pessoas deslocadas, segundo números da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras.
Abdul Majeed Al Qareh/MSF

O Expresso tem publicado ao longo dos últimos dias um conjunto de artigos sobre aquilo a que os Médicos Sem Fronteiras chamaram “um novo desastre humanitário”: a Turquia, país com quase quatro milhões de refugiados, abriu as suas fronteiras e muitos desses refugiados começaram a passar - sobretudo rumo à Grécia, onde o Governo local chamou “invasão” ao que está a acontecer. Este é o capítulo VIII e é contado a partir da Síria, de onde saem muitos desses quase quatro milhões de refugiados

“‘Otimista’ é capaz de ser palavra forte para quem foi atacado com bombas durante três meses”: capítulo VIII de “Um Desastre Humanitário”

Helena Bento

Jornalista

Os bombardeamentos terminaram na província síria de Idlib, ou pelo menos os ataques sobre civis e hospitais e jardins de infância onde famílias inteiras se tinham escondido por achar que era seguro. Ainda assim, não se crê que esta paz “frágil” se estenda “porque a guerra dura há quase nove anos e é difícil ter grandes expectativas”, diz ao Expresso Michel-Olivier Lacharité, coordenador de emergências dos Médicos Sem Fronteiras, que tem estado a acompanhar o trabalho das várias equipas da organização não-governamental nos campos junto à fronteira da Síria com a Turquia. As “dificuldades ali são muitas”, diz, descrevendo como várias famílias, “duas, três”, são obrigadas a partilhar espaços minúsculos, e há consequências provocadas pela “falta de acesso a água potável” e pelo frio. “As pessoas aparecem nas nossas clínicas com infeções na pele e com infeções respiratórias”. Além disso, “é preciso não esquecer que as pessoas que estão a passar por isto agora já foram obrigadas a mudar de sítio muitas vezes” e de “cada vez que o fizeram, de cada vez que pegaram nas suas coisas e abandonaram as suas casas, acreditavam que iriam encontrar um lugar seguro mas de todas as vezes acabaram a ser atacadas com bombas pelo governo do seu país e os seus aliados russos”.

Os governos turco e russo assinaram um acordo de cessar-fogo e os bombardeamentos diminuíram. A população sente-se mais otimista?
Otimista é capaz de ser uma palavra muito forte para quem esteve a ser atacado com bombas durante três meses e só nos últimos dez dias teve alguma paz. Essa questão teria de ser colocada às próprias pessoas, mas a nossa perceção é de que estão totalmente exaustas e aterrorizadas com a situação. Vamos a ver o que acontece nos próximos dias mas, quer dizer, esta guerra dura há quase nove anos, é difícil ter grandes expectativas. O que sabemos é que estas pessoas querem ficar na Síria, nas suas casas, mas a linha da frente de combate começa a mover-se para norte e isso torna difícil prever o que vai acontecer. Na verdade, ninguém arrisca fazer previsões.

Como vê esse acordo de cessar-fogo?
A minha preocupação não é o acordo, mas sim a população. E é preciso encontrar uma solução para a população porque a que encontraram agora é demasiado frágil. Não sei se as tréguas se vão manter, mas todos nós temos de continuar a exercer pressão para garantir que, de facto, não há mais bombardeamentos e que as pessoas têm condições de vida dignas. O mais importante é isto — que acabem os ataques aéreos sobre os civis e sobre as infraestruturas médicas para que médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde possam continuar a trabalhar e a tratar da população.

Michel-Olivier Lacharité, coordenador de emergências dos Médicos Sem Fronteiras, que tem estado a acompanhar a situação na província de Idlib, na Síria.
Remi Decoster/MSF

Os Médicos sem Fronteiras apelaram recentemente às autoridades turcas para que facilitem o trânsito de equipamentos e dos seus profissionais para o noroeste da síria. O pedido foi acedido?
O nosso objetivo era expandir a resposta humanitária na Síria e já começámos a fazê-lo. Estamos a dar apoio a quatro hospitais na região de Idlib, localizados ao longo da fronteira com a Turquia, e a aumentar a distribuição de água e a construir novos sistemas sanitários. São cada vez mais as pessoas deslocadas por causa dos bombardeamentos e a viverem em tendas ou noutro tipo de abrigos. Os ataques pararam há cerca de uma semana, mas continua a haver muito medo, medo das bombas ou de se ficar cercado.

E há pessoas que estavam nos campos mas voltaram entretanto para as suas casas, não é?
É verdade. As nossas equipas no terreno aperceberam-se de que, com o cessar-fogo, há pessoas a tentar voltar para os sítios de onde fugiram e estamos a acompanhar essa situação de perto. Estamos também a aumentar o número de clínicas móveis para dar resposta aos diferentes problemas de saúde da população. Uma delas localizar-se-á na região de Afrin, na província de Alepo, para onde se estão a deslocar algumas pessoas. Ainda assim, continuamos a precisar da colaboração das autoridades turcas, até porque não temos presença permanente na Turquia. Estamos confiantes de que vamos conseguir ter as autorizações necessárias para continuar a trabalhar na região.

Campo de Deir Hassan, em Idlib
Abdul Majeed Al Qareh/MSF

É seguro para essas pessoas voltar para casa ou para os sítios de onde tinham fugido?
Não sei se é seguro, mas todas as soluções são más. A situação nos campos é horrível. Estão completamente lotados, nem sempre há acesso a água e não há casas de banho. As pessoas começaram a deslocar-se em dezembro e entretanto começaram a ver notícias sobre o fim dos bombardeamentos e a ponderar sair dos campos. Há alguma movimentação nesse sentido, mas não é algo maciço. A situação é muito frágil, como já referi. O Presidente turco acusou recentemente o regime sírio de ter quebrado o acordo, portanto só nos resta ir avaliando à medida que os dias vão passando. E continuar a fazer pressão, para garantir mais abrigos e tendas onde as pessoas se possam proteger do frio.

Há notícias sobre crianças a morrer ao frio...
Sim, as dificuldades são muitas. No campo de Deir Hassan, por exemplo, onde estamos presentes, o número de consultas nas nossas clínicas aumentou imenso nos últimos tempos, porque o número de pessoas é também cada vez maior. Há duas, três famílias a ocupar cada tenda, sem espaço para se mexerem. É muito difícil ter acesso a água potável. Nós temos abastecido o campo mas ainda assim é difícil. E, por causa disso, por falta de acesso a água limpa, as pessoas aparecem nas clínicas com infeções na pele e também com infeções respiratórias, porque apesar de estarmos cada vez mais perto da primavera o tempo continua muito frio. Além disso, é preciso não esquecer que as pessoas que estão a passar por isto agora já foram obrigadas a mudar de sítio muitas vezes. De cada vez que o fizeram, de cada vez que pegaram nas suas coisas e abandonaram as suas casas, acreditavam que iriam encontrar um lugar seguro mas de todas as vezes acabaram a ser atacadas com bombas pelo governo do seu país e os seus aliados russos. A realidade é esta, é devastadora, e também a nossa equipa está muito exausta. É um trabalho muito duro.

O que dizem as pessoas nos campos aos voluntários da organização que estão a ajudá-las?
É óbvio que a maior preocupação delas são as bombas, já que estiveram a ser atacadas durante três meses, desde dezembro. Há escolas e infantários onde várias famílias tinham procurado abrigo que foram bombardeadas durante semanas inteiras. Todos os dias havia pessoas a dar entrada nos hospitais com ferimentos graves, feridas na cabeça, sem pernas ou braços. Portanto, o que mais as preocupa são os ataques aéreos e a violência da guerra. É isso que nos perguntam logo — quando é que a guerra vai finalmente acabar? — e depois pedem comida e outros bens básicos. Depois de terem andado nos últimos anos de cidade para cidade, fugindo às bombas e ao conflito, chegam aqui quase sem nada.

Como está a situação nas várias cidades da província de Idlib?
As cidades estão muito destruídas e aí, enquanto organização, não podemos fazer grande coisa. Doámos alguns bens urgentes na cidade de Idlib, mas os hospitais que ainda estão em funcionamento são geridos por sírios, voluntários sírios, não por nós. A situação é similar à dos campos, com a diferença de que havia bombardeamentos e as pessoas estavam escondidas e agora já não estão. A situação mudou nesse sentido, mas ninguém sabe até quando vai durar essa paz. Não há problemas sérios de subnutrição, mas o acesso a comida também é difícil. É isso que nos dizem aí: que precisam de um sítio seguro para onde ir, já que as suas casas estão destruídas, e de comida e todo o tipo de produtos de higiene e outros bens básicos que lhes permita viver uma vida normal.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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