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Um novo desastre humanitário, capítulo II. Milhares de alguéns em terra de ninguém

Um novo desastre humanitário, capítulo II. Milhares de alguéns em terra de ninguém
OZAN KOSE/ Getty Images

O número continua a aumentar: 24 mil pessoas foram impedidas de entrar na Europa mas autorizadas a sair da Turquia. Nos poucos metros da terra de ninguém ergue-se um acampamento. Estão ali milhares de pessoas: “Nunca em momento algum pensei que pudesse ficar tão mau”, dizem os Médicos Sem Fronteiras

Um novo desastre humanitário, capítulo II. Milhares de alguéns em terra de ninguém

Marta Gonçalves

Coordenadora de Multimédia

Bip.

O telefone toca.

Uma mensagem.

Desbloquear. Abrir.

“A Grécia vai aumentar o nível de segurança na fronteira para máximo. Não tentem atravessar as fronteiras gregas.”

A mensagem chega a qualquer telemóvel com cartão sírio, afegão ou paquistanês que, junto à fronteira grego-turca, se ligue às redes de telecomunicações da Grécia. Ainda não tentaram fazer aquilo que ali foram fazer e já estão a ser alertados: não o façam.

É sobretudo durante a noite que quem se junta à fronteira tenta passar da cidade turca de Edirne para a grega Kastanies. Se junto aos postos de controlo a passagem já se torna impossível, muitas pessoas tentam a sorte e percorrem de norte a sul e de sul a norte à procura de um lugar onde não sejam apanhadas. O que são 150 quilómetros de fronteira para quem já percorreu milhares para chegar até ali? Alguns arriscam.

Ainda esta terça-feira dois homens foram detidos pelas autoridades gregas, refere AFP. Tinham escapado para o lado europeu da vedação. Um vinha do Mali, outro do Afeganistão, e não estiveram pouco mais do que alguns minutos livres na Europa. Levaram-nos para um carrinha onde já estavam mais 20 que tinham arriscado como eles dois. Vinham da Somália, do Bangladesh, do Iraque e também do Afeganistão (é a nacionalidade maioritária).

BULENT KILIC/ Getty Images

“Há um factor importantíssimo em tudo isto que se está a passar: a Turquia tem acumulados mais de 3,7 milhões de refugiados no seu território. E, independentemente de todas as circunstâncias e tensões políticas, é o pais com mais refugiados do mundo e duvido muito que tenha capacidade para lhes dar condições dignas”, considera Carlos Nolasco, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e especialistas em migrações (integra o Núcleo de Estudos sobre Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz daquele centro de investigação). “Além de toda a tensão política e militar na fronteira, há uma crise humanitária. E não vemos a União Europeia a argumentar neste sentido, tem num impasse a vida de milhares de humanos.” Para o investigador há uma responsabilidade ética porque a UE “arroga-se de ser um espaço de consciência política, cívica e humanitária que depois tem este tipo de atitudes com os refugiados”, e também jurídica, uma vez que grande “parte dos Estados-membros assinaram a convenção de Genebra e, consequentemente, há a obrigação legal de dar refúgio”.

Na fronteira terrestre a imagem repete-se nos últimos dias: alguém que chega, levanta uma tenda (um trapo velho equilibrado em paus, na verdade), senta-se e espera. À noite acendem-se fogueiras. A todas as horas chega mais alguém: homens, mulheres, crianças, bebés. Famílias completas e também pessoas solteiras. Maioritariamente afegãos.

Esta terça-feira, a União Europeia prometeu mais financiamento à Grécia para lidar com o crescente aumento de entradas - e tentativas de entradas - no país e assegurou também que será enviada ajuda médica através do Mecanismo Europeu de Proteção Civil. Os mais altos representantes das instituições europeias visitaram a região Evros, onde se localiza a fronteira, e à Turquia deixaram um aviso: “Aqueles que procuram testar a unidade da Europa ficarão desapontados. Vamos manter o rumo e a nossa unidade vai prevalecer. Agora é a hora da ação concertada, de ter cabeça fria e de agir com base nos nossos valores.”

Também esta terça-feira, a Grécia anunciou que vai suspender pelo menos durante um mês os pedidos de asilo.

Anadolu Agency/ Getty Images

Para Carlos Nolasco estas são medidas que vão ter impacto “apenas nos primeiro momentos”. “O que está ser feito é para atenuar a situação que a Grécia vive. É um país com problemas dentro daquilo que são as condições dos países da UE, teve uma crise económica que todos conhecemos, não tem recursos para dar resposta a esta situação… Estas são medidas meramente temporárias e cosméticas.”

Para Filipe Pathé Duarte, professor universitário e investigador na área da segurança internacional, esta forma de pressão é como uma torneira que foi aberta pela Turquia para pressionar a União Europeia a tomar medidas e a apoiar Ancara. E se a UE não quiser ceder e apoiar? “Sem querer prever o que vai acontecer, creio que, se a decisão for não apoiar, o fluxo de refugiados pode aumentar a tensão na fronteira, criando a perceção de um grande fluxo, a perceção de insegurança e de instabilidade social. A longo prazo, esta imensa perceção pode dar ainda mais força a movimentos de carácter nacionalista e xenófobos que estão a crescer na Europa.” E se a UE apoiar? “Depende do tipo de apoio, a Europa tem de ser muito cautelosa”, defende.

“Nunca em momento algum pensei que pudesse ficar tão mau”

Conhecemos Caroline Willeman há pouco mais de uma ano. Encontrámo-la pela primeira vez na clínica dos Médicos Sem Fronteiras, a poucos metros da entrada do Centro de Recepção e Identificação de Moria, na ilha grega de Lesboa. A mesma clínica que hoje deveria estar aberta e não está porque é demasiado perigoso. “Continuamos a trabalhar ali e no Olive Grove [o campo não oficial que nasceu logo ao lado num campo de oliveiras devido à falta de espaço]. Mas esta terça-feira não conseguimos. É muito perigoso, além disso as estradas para lá estão bloqueadas e é difícil passarmos”, conta ao telefone ao Expresso a coordenadora das operações daquela organização não-governamental na ilha.

Os confrontos entre manifestantes e polícia no centor de Mitilini
ANGELOS TZORTZINIS/ Getty Images

Os bloqueios das estradas é um dos resultados dos protestos que têm surgido nas últimas semanas na ilha. Começou com uma grande manifestação contra a construção de um novo centro de detenção. “Havia pessoas de todos os tipos na manifestação”, descreve Caroline. “Havia quem é contra refugiados, claro, mas também quem é a favor e não quer mais um centro na ilha e que não concorda com as condições em que as pessoas aqui estão.”

Mas os protestos continuaram e movimentos associados à extrema-direita têm-se insurgido. Dizem ser um grupo muito pequeno de pessoas mas que têm aumentado a violência. O principal alvo são as pessoas que tentam desembarcar na ilha, mas também os voluntários e trabalhadores humanitários, assim como jornalistas (nas redes sociais há vários relatos de material fotográfico destruído e pessoas agredidas). “É inegável que há um problema de segurança”, diz Caroline.

Até os migrantes e refugiados se manifestam. No centro daquela que é maior cidade da ilha, Mitilene, os confrontos com as autoridades têm sido frequentes.

Foi no sábado que as fronteiras turcas abriram. O reflexo da decisão não foi imediato. “Logo a seguir não notámos, talvez porque estivesse mau tempo para navegar. Mas o tempo agora melhorou.” E isso notou-se. Até segunda-feira, as Nações Unidas davam conta de pelo menos 1300 novas entradas nas ilhas gregas.

“Há claramente uma sobrelotação da ilha. Em Moria já estão 20 mil pessoas, chegaram entretanto mais de mil pessoas, que nem podem ser levadas para o campo porque as estradas estão bloqueadas”, refere. “Sabia que as coisas aqui eram complicadas. Os últimos quatro anos foram terríveis, mas estamos a chegar a um momento de explosão. Nunca em momento algum pensei que isto pudesse ficar tão mau.”

Lesbos tem uma população de cerca de 86 mil habitantes. Hoje tem mais 20 mil refugiados e migrantes.

A polícia em primeiro plano, refugiados e migrantes em segundo e, ao fundo, o campo de Moria, o maior da Europa
ANGELOS TZORTZINIS/ Getty Images

O acordo assinado entre a Turquia e a União Europeia criou uma pressão extra nas ilhas gregas porque quem chega tem de pedir obrigatoriamente asilo ali - e os processos chegam a demorar mais de um ano - e só com uma resposta positiva as pessoas podem deixar a ilha (caso o pedido não seja aceite, são enviados de regresso à Turquia). Ou seja, as pessoas não saem porque os processos são morosos mas ao mesmo tempo continuam pessoas a chegar.

O cenário repete-se em Samos, Leros, Chios e Kos. As cinco ilhas gregas são os principais pontos de entrada na Grécia por via marítima. Por exemplo, em Chios, denunciam as organizações não governamentais, há três dias seguidos que não chega comida ao campo de refugiados devido ao bloqueio de populares.

“O acordo criou um problema: temos 20 mil pessoas numa ilha que se fossem distribuídas pela Europa não era nada”, defende Caroline. “Apesar de todos avisos vão continuar a vir e a arriscar atravessar a fronteira grega, que está fechada. Estamos a falar de pessoas que vão ficar na terra de ninguém.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mpgoncalves@expresso.impresa.pt

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