Internacional

“Era um símbolo da resistência contra a opressão”. Morreu Lina Ben Mhenni, uma das heroínas da 'Primavera Árabe' na Tunísia

“Era um símbolo da resistência contra a opressão”. Morreu Lina Ben Mhenni, uma das heroínas da 'Primavera Árabe' na Tunísia
CYRIL FOLLIOT

A diretora da Human Rights Watch naquele país do Norte de África recorda ao Expresso Lina Ben Mhenni. “Era ousada e corajosa, generosa. Apesar da doença, dedicou muito do seu tempo a lutar por direitos"

O corpo frágil de Lina era amparado pela alma que suspirava por outra Tunísia. Armada até aos dentes com uma caneta e uma câmara fotográfica, registou a mudança dos ventos. A máquina opressora, implacável, ia sufocando liberdades e dignidades. Zine Ben Ali chegou ao poder no longínquo ano de 1989 depois de um golpe de Estado e escolheu o fado da Tunísia com dureza. Seriam 23 anos no poder, graças também ao contorcionismo que fabricou na Constituição daquele país africano. A comunidade internacional foi benevolente com o ditador pois havia a crença de que seria útil, travando de alguma maneira avanços muçulmanos.

Ben Ali tinha amigos na elite, sobretudo em Washington e Paris, mas, a reboque de desemprego, repressão e do segredo mal guardado das eleições fraudulentas, foi ganhando inimigos no seu país. Mohamed Bouazizi, um vendedor de rua que se imolou e precipitou o início da revolução, foi um deles. Entre algumas dores de cabeça para o regime, Lina Ben Mhenni foi talvez uma das mais agudas e temíveis. A jornalista e também professora de Linguística e Inglês, em Tunes, morreu na segunda-feira, aos 36 anos, após doença crónica renal prolongada. A sua morte emocionou o país. Afinal, era “um símbolo da resistência contra a opressão”.

A diretora da ONG Human Rights Watch na Tunísia conhecia-a bem. “Era ousada e corajosa, generosa, alguém que não poupava esforços a ajudar outros em perigo”, recorda Amna Guellali ao Expresso, numa troca de e-mails. “Apesar da doença, dedicou muito do seu tempo a lutar por direitos.”

FETHI BELAID

Guellali faz um esboço do país naqueles tempos prévios à ‘Primavera Árabe’, que revelaria outro cantar dos pássaros e da esperança no Norte de África. “O país estava sob uma ditadura. Ben Ali, o Presidente de então, estava a impor um controlo rígido sobre os media e usava todo o tipo de ferramentas repressivas para restringir o acesso à informação, inclusive a censura através da Internet. Muito poucas pessoas ousaram falar contra o regime. A Lina foi uma delas.”

Ao lado de outros ativistas, Lina Ben Mhenni criou a campanha “Nhar ala Ammar”, que protestava contra o bloqueio de alguns sites na Internet e anunciava dias negros para o regime. Traduzindo: “Um dia mau para a máquina de censura”. É Guellali que esclarece o significado da frase.

A jornalista ganhou relevância e ficou conhecida na sociedade tunisina pelo que partilhava no seu blogue, A tunisian girl. Por lá escreveu crónicas da revolução. “Foi uma das primeiras pessoas a ir até Regeb, Sidi Bouzid e Kasserine, para documentar o recurso a munições reais contra manifestantes. Naquela altura, era muito arriscado fazê-lo”, diz Amna Guellali.

Jim Rankin

O blogue A tunisian girl existe desde 2009 e conta com 1070 publicações. A atividade mais intensa verifica-se em 2011, o ano em que a Tunísia deu uma cambalhota e liderou a mudança que desencadeou a ‘Primavera Árabe’. Ben Ali fugiu então para a Arábia Saudita, onde ficaria até ao fim dos seus dias (o ditador morreu em setembro de 2019).

Perto do fim de 2011, Lina Ben Mhenni ficou a saber que conspiravam o seu nome para Nobel da Paz. “Foi uma completa surpresa, uma muito boa surpresa”, admitiu à Al Jazeera (AJ), em outubro desse ano. Apesar de algumas tricas com outros bloggers, Mhenni garantiu que a solidariedade entre eles mantinha-se depois da revolução. Entre demasiadas interações e requisitos para marcar presença em conferências, algo bizarro aconteceu: o pai, Sadok, saturado de tanta pressão, confiscou-lhe a chave do carro e o computador, com o qual escreveu uma publicação no Facebook e Twitter a pedir algum sossego, conta o mesmo artigo da AJ.

Se o cenário do Nobel não evoluiu de boato, o reconhecimento chegou pelo menos por parte do jornal espanhol “El Mundo”, que lhe entregou, em 2011, o 10.º Prémio Internacional de Jornalismo. Em março de 2015, a tunisina escreveu um texto para aquele periódico com o título “Não plantarão as sementes do medo”, no qual aplaudia os avanços quanto aos direitos humanos consagrados na renovada Constituição da Tunísia, que exigia ainda a igualdade entre homens e mulheres.

“A nova Constituição da Tunísia e o relativo progresso político que experimentou o país”, escreveu, “contrasta sensivelmente com as transições com conflitos de outros países do Médio Oriente e do Norte de África, que continuam presos à desordem. Por isso, aos olhos do mundo, a Tunísia constitui um raro exemplo do mundo árabe, em que a queda de um ditador deu lugar a um progresso político apesar da turbulência dos últimos três anos. Por estes e muitos outros elementos, considera-se a Tunísia um símbolo das transições democráticas”, celebrou, refletindo ainda sobre o “tentador objetivo” em que se transformou o país para terroristas e extremistas.

FETHI BELAID

“Depois da revolução, ela continuou a lutar pela democracia e pelos direitos humanos”, prossegue ao Expresso Guellali. “Ela estava a lutar em todas as frentes. Podias ir a qualquer manifestação, contra corrupção, abusos policiais, direitos de LGBT, etc, e certamente saberias que a Lina já lá estava, com a sua câmara, a tirar fotografias para documentar o que se passava e a fazer parte do protesto, com o seu corpo frágil a marchar até ao fim do protesto.”

A morte da jornalista, professora e ativista, aos 36 anos, motivou uma “onda de emoção” na Tunísia, revela a diretora da Human Rights Watch no país. O Presidente Kaïs Saïed, eleito em 2019, e as autoridades do país visitaram a família para apresentarem condolências e lamentos, anunciando depois que haverá um funeral com honras de Estado.

“Até pessoas que não a conheciam de perto estavam muito tristes com a morte dela”, nota Amna Guellali, “porque ela era um símbolo da resistência contra a opressão”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: htsilva@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate