25 novembro 2019 22:43
Dresden é considerada o berço do movimento anti-Islão Pegida
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A cidade de Arnsdorf voltou a ser notícia na sexta-feira, quando a presidente de Câmara anunciou a sua demissão. Já há três anos aquela cidade do leste da Alemanha tinha feito manchetes por causa do ataque contra um refugiado iraquiano. Os dois eventos estão intimamente relacionados mas os ataques verbais e físicos não se circunscrevem ao leste do país. “Mais uma vez, um funcionário público capaz abandona as suas funções em resultado da pressão de militantes extremistas e inimigos de uma sociedade aberta”, lamenta um historiador de Dresden
25 novembro 2019 22:43
O caso remonta a 21 de maio de 2016 mas continua a dar que falar e, na última sexta-feira, levou à renúncia da presidente da Câmara de Arnsdorf, uma pequena cidade no estado alemão da Saxónia. Quatro membros de um grupo local de autoproclamados justiceiros retiraram um refugiado iraquiano, então com 21 anos, de um supermercado e amarraram-no com cabos a uma árvore. O episódio foi registado em vídeo e amplamente partilhado. Na altura, Martina Angermann, do SPD (centro-esquerda), condenou publicamente o ato contra o jovem, que, além das necessidades imediatas, apresentava um quadro de doença mental.
No início do ano seguinte, o juiz que julgou o caso entendeu tratar-se de um crime de pouca gravidade e os membros do grupo não foram punidos. Angermann continuou a pronunciar-se contra o ataque, apelando repetidamente à agora ministra da Justiça, Christine Lambrecht, que endurecesse as leis contra os crimes de ódio e de extremismo. A presidente da Câmara daquela cidade recebeu várias ameaças de morte e foi alvo de um processo por difamação apresentado por um dos elementos do grupo.
Em outubro do ano passado, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD, de extrema-direita) interpôs um pedido para retirar Angermann da presidência da autarquia e, em fevereiro deste ano, a autarca invocou motivos de saúde para pedir baixa médica. Na sexta-feira, demitiu-se enfim do cargo que ocupava desde 2001. Arnsdorf tem cerca de cinco mil habitantes e fica a pouco mais de 20 quilómetros da capital estadual, Dresden. Foi com um “misto de tristeza e raiva” que o historiador Herrmann Dietrich recebeu a notícia da renúncia de Angermann.
AfD é o segundo maior partido da Saxónia
“Mais uma vez, um funcionário público capaz abandona as suas funções em resultado da pressão de militantes extremistas e inimigos de uma sociedade aberta”, lamenta ao Expresso aquele historiador de Dresden. Dietrich lembra que Angermann foi eleita três vezes presidente de Câmara com maiorias esmagadoras.
Nos últimos anos, o desenho político naquela região sofreu grandes alterações. Em setembro, nas eleições para o Parlamento estadual, o AfD tornou-se o segundo maior partido da Saxónia, separado por menos de 5% da CDU (de centro-direita, o partido da chanceler Angela Merkel). O SPD não foi além da quinta posição.
Reagindo à resignação de Angermann, o SPD da Saxónia, pela voz do secretário-geral estadual, Henning Homann, recordou que a agora ex-autarca foi “verbalmente atacada e ameaçada durante meses” e que “tentaram intimidá-la com uma denúncia”. “Não podemos permitir que as campanhas da extrema-direita ponham em causa os nossos valores democráticos e a nossa coesão. Tal coisa não pode acontecer”, sublinhou.
Governos central e local fazem “pouco ou nada”
Arndt Leininger, investigador de Sociologia Política da Universidade Livre de Berlim, alerta que os ataques e as ameaças não se circunscrevem ao leste da Alemanha. E exemplifica com o ataque a uma sinagoga e o assassínio de duas pessoas na cidade de Halle, o assassínio do dirigente político da CDU Walter Lübcke este verão, o ataque com faca ao presidente da Câmara de Altena no ano passado ou o ataque, também com faca, em 2015 da então candidata e atual presidente da Câmara de Colónia, Henriette Reker.
“O Governo a nível nacional, mas também a outros níveis, não está a fazer o suficiente para combater estas tendências. Basta lembrar que o Ministério da Família, dos Idosos, das Mulheres e da Juventude, liderado pelo SPD, anunciou planos para cortar no orçamento destinado à promoção da democracia, que financia o combate à extrema-direita”, lamenta o investigador ao Expresso. Também o historiador de Dresden afirma que “pouco ou nada” tem sido feito nesta matéria, referindo ainda o “sério problema” de infiltração de “elementos da extrema-direita nas forças da polícia e entre os responsáveis pela aplicação da lei em geral”.
Herrmann Dietrich descreve o caso do ataque ao refugiado iraquiano como “um incidente paradigmático” em que “indivíduos assumiram a justiça nas próprias mãos”. “As suas ações foram apoiadas por algumas pessoas na cidade, enquanto uma maioria ficou em silêncio. O juiz deixou-se intimidar e o caso foi abandonado”, critica.
A ministra alemã da Justiça condenou a sucessão de acontecimentos que levaram à renúncia de Angermann. “Quando as pessoas deixam de se envolver com a sua comunidade por causa de ameaças e de uma campanha de difamação em curso, a nossa democracia está em perigo”, afirmou a governante, que também é do SPD.
“Nas cidades pequenas, extremistas chegam a ser mais de metade da população”
Irene vive numa pequena cidade nos arredores de Dresden, tendo pedido ao Expresso para não revelar a sua localização exata. Por razões de segurança, omitimos também o seu apelido. Ela preside a uma associação que tenta restaurar um castelo, que se encontra praticamente em ruínas, e usá-lo para eventos culturais. No entanto, o AfD tem outros planos para o espaço. “Pessoalmente, só tenho experiência de violência verbal. A extrema-direita tem uma boa rede mas, neste caso, ainda não passou à violência física”, conta.
“Alguns fantasiam com o poder e até falam numa guerra civil que estará para acontecer. Eles tentam exercer pressão sobre pessoas que criticam o AfD e restringir as liberdades artísticas. Já aconteceu professores serem ameaçados de demissão por se referirem a eles como um partido racista. A ameaça poderá concretizar-se se elementos do AfD integrarem as administrações das escolas”, adverte. “Nas cidades pequenas, a proporção de extremistas e eleitores do AfD é por vezes tão alta que abarca mais de metade da população”, diz Irene.
Um jovem alemão de 28 anos, que não quis ser identificado, mostra-se “desapontado” por Angermann ter recebido “tão pouco apoio, até mesmo do seu partido”. “Graças ao AfD, é enorme a divisão da Alemanha entre pessoas que ajudam refugiados e aquelas que se lhes opõem. Todos, sem exceção, devem condenar o ataque de 2016. Afinal, onde estão a humanidade e a força da democracia contra os nazis?”, questiona-se.