Ninguém sabe muito bem como resolver o problema Corbyn. Sim, porque o líder dos Trabalhistas, ele que galvanizou as bases do partido, a quem se atribui unilateralmente a saudável culpa de trazer de volta os jovens à política e os seus pais às fileiras da luta social, essa transfusão de sangue que voltou a pulsar vermelho nas veias do Labour, com todas as conotações que quisermos ler nessa tonalidade, é um problema. Tem uma legião de fãs que veem nele o messiânico salvador dos destituídos, um “Bernie” britânico, um homem intocado por qualquer tipo de corrupção, seja ela financeira ou ideológica. Mas a questão é que, como ainda há menos de 24 horas disse a líder dos liberais-democratas, Jo Swinson, “Jeremy Corbyn está nos anos 70”, como todas as conotações que quisermos ver nessa década. E ele até pode já não viver no passado comunista que o define, mas um autocolante é sempre um autocolante e as frases fáceis começam a circular em parangonas pelas primeiras páginas dos jornais, tornando-se tantas vezes tudo aquilo que sabemos sobre alguém.
Boris Johnson sofre do mesmo mal: a imprensa pinta dele uma imagem de alguém focado em si mesmo, com uma agenda de valorização pessoal que ultrapassa em muitas milhas as suas preocupações com o país e um homem com pouco conhecimento sobre os principais dossiês que tem de dominar, nomeadamente o do Brexit. “Que um homem destes nunca tenha um voto de confiança”, escreveu o “The Guardian” em editorial. O imperador dos média Rupert Murdoch, por exemplo, disse ao escritor e jornalista Michael Wolff que Boris “é um tipo sem grandes crenças ou valores que diz qualquer coisa para agradar uma multidão” e um “desorganizado que trabalha pouco”. Já Andrew Gimson, um dos seus biógrafos, disse o contrário em entrevista ao Expresso: “Boris é um jornalista dotado, sabe perfeitamente quando ceder terreno ou quando mudar de direção porque sabe quando a história muda, saber ler as pessoas. Tem energia e personalidade de sobra, o que lhe permite perseguir estratégias que outros políticos poderiam considerar demasiado perigosas”.
As bases de apoio
Será Corbyn um “inelegível”? É difícil dizer porque as sondagens que davam o descalabro do ‘labour’ em 2017 acabaram por se revelar erradas. O ‘labour’ conseguiu 30% dos votos, mais 30 deputados do que nas eleições de 2015 e ficou a cerca de um milhão de votos dos conservadores - é muito mas no Reino Unido há 46 milhões de pessoas registadas para votar.
Ao mesmo tempo, algumas sondagens são tão drásticas que não podemos não as referir. Segundo uma pesquisa da IPSOS Mori revelada em setembro, Jeremy Corbyn é o líder menos popular desde 1945, com apenas 16% dos inquiridos a afirmarem que confiam no seu trabalho. As medidas que ele apresenta, por contraponto, são mesmo muito populares, por isso é que tanta gente dentro do ‘labour’ considera que, se Corbyn fosse substituído, tudo correria melhor. A popularidade de Boris não está tão afetada. Cerca de 35% dos britânicos têm uma boa opinião do seu primeiro-ministro, contra 46% que dizem o contrário.
Dentro do partido de Boris as trincheiras de fogo amigo formaram-se apenas depois de ele ter sido eleito líder dos conservadores, há menos de meio ano, enquanto Corbyn está a lidar com oposição interna há meia década. Johnson soube castigar os rebeldes que aprovaram, ao lado da oposição, um projeto de lei para impedir a saída do Reino Unido sem qualquer acordo, e expulsou 21. Mas outros escolheram saltar para fora do barco sem ninguém os empurrar e foram sentar-se na bancada dos ‘lib-dems’, o partido que se tornou uma espécie de guarda-chuva para todos os que, independentemente de filiações passadas, querem lutar pela revogação do artigo 50.
Os parlamentares de Corbyn também já várias vezes se manifestaram contra a sua rigidez ideológica e muitos, se bem que quase todos anonimamente, já disseram à imprensa que enquanto Jeremy Corbyn for a única opção do ‘labour’ para primeiro-ministro, o partido permanecerá na oposição. Se a ala dos centristas tem ou não razão só será possível avaliar a 12 de dezembro - o que é certo é que, como já dissemos em cima, 2017 não foi o descalabro que se pensava.
Quando foi eleito para a liderança, com mais votos do que o esmagadoramente consensual Tony Blair (Corbyn teve 60% dos votos, Blair 57%), a imprensa britânica chegou a publicar vários golpes desenhados pelos trabalhistas para destronar Corbyn, logo nas primeiras semanas depois de ter sido ser eleito, mas as suas costas são feitas de granito, material que, como se sabe, não sofre grande erosão. Por comparação, Johnson tornou-se primeiro-ministro britânico com 92.153 votos de membros dos conservadores; Corbyn foi eleito líder dos trabalhistas com 313.209.
O movimento de bases que sustenta a popularidade interna de Corbyn, o Momentum, continua a liderar a agenda ideológica - e também a provocar vários problemas a Corbyn, como, por exemplo, os escândalos sucessivos que tornam muito difícil, mesmo aos seus apoiantes, negar a existência de um grave problema de antissemitismo nas entranhas do partido. Por outro lado há o cliché do regresso às origens, o ‘full circle’, o poder das massas - já se escreveu isso tudo mas por algum motivo não soa a lugar comum, soa a confirmação. Pelo menos para aqueles que não se cansam de ler nos jornais aquilo que consideram não só uma vitória de Corbyn mas uma vitória pessoal. Mas não é com palavras que isto se consegue - muitos apoiantes de Corbyn falam de uma ligação transcendente ao líder dos trabalhistas. Até porque Corbyn pouco fala. Quando o faz não faz uso da primeira pessoa, "we" apenas, tal o seu compromisso com a colectividade. Ainda assim, o apoio das bases não é o que era quando ele foi eleito, em 2015, e essa queda tem um nome: Brexit. Corbyn nunca foi capaz de dizer - isto enquanto líder do ‘labour’, porque antes disso disse sem grandes rodeios - o que realmente pensa da UE. Ainda há poucos dias, em entrevista à BBC, foi de novo incapaz de responder se quer ou não o Reino Unido fora da Europa. Johnson é aliás tido como mais europeísta que Corbyn, o que é dizer muito de Corbyn.
Corbyn, um rebelde contra os seus; Boris, o multicultural
Atípico é um eufemismo para Jeremy, como pede aos jornalistas e ativistas para se lhe referirem, tal como foi o seu percurso até líder dos trabalhistas: era o senhor de barbas que a imprensa de direita caricaturava, a imagem sem nome de um rosto da revolução, o retrato-robô que todos descreveríamos à polícia se nos dissessem que andava um marxista solto em Westminster. Nunca ia chegar sequer aos bancos da frente do parlamento - onde se sentam os ministros e os seus homónimos na "sombra" -, quanto mais frente a frente, todos dias, com Cameron e agora com Johnson.
Votou contra o seu próprio partido mais de 500 vezes, ou 25% de todas as leis que lhe passaram pelas mãos nas suas três décadas como parlamentar. Chegou ao boletim de voto para a liderança por brincadeira de uns colegas que queriam "alargar o debate" sobre a identidade do partido.
Jeremy Corbyn nasceu quatro anos depois do fim da segunda guerra mundial, cresceu num Reino Unido mergulhado na miséria, ainda que a sua família não tenha passado por grandes dificuldades. Corbyn é o mais velho dos dois filhos de Naomi e David, ela professora de matemática e ele engenheiro electrotécnico - foi sempre um aluno acima da média, tendo ingressado numa escola extremamente prestigiada, a Adams Grammar School. Nascido em Chippenham, no sudoeste do país, mas criado no norte, em Shropshire, tanto Jeremy como o seu irmão Piers foram sempre encorajados pelos pais a discutir temas complexos para sua idade, como e com adultos, à mesa de domingo. Ambos os irmãos ingressaram no Partido Trabalhista ainda muito jovens, apesar de Piers se ter entretanto tornado um controverso meteorologista, cético em relação à mão humana no fenómeno do aquecimento global.
Quinze anos mais tarde, quando Corbyn já andava a distribuir panfletos contra a proliferação do armamento nuclear, nasce Alexander Boris de Pfeffel Johnson. Durante a infância, Boris viveu em cinco cidades, cinco bairros de Londres, uma vila no distrito de Somerset, três estados norte-americanos, três países e dois continentes. Nasceu em Nova Iorque, a 19 de junho de 1964, com sangue turco, francês e alemão. O seu bisavó, Ali Kemal, foi ministro do Interior no Império Otomano.
Vidas e controvérsias
Corbyn foi eleito pela primeira vez em 1983, pelo assento seguro de Islington North, uma freguesia abastada no Norte de Londres. Desde então perfilhou todas as causas da esquerda radical, ou daquilo que se entende por esquerda radical no Reino Unido. Poucas semanas depois do infame ataque do IRA a um hotel de Brighton, onde uma bomba esteve demasiado perto de dizimar metade do corpo ministerial de Margareth Thatcher, Corbyn convidou Gerry Adams, nome maior do partido republicano irlandês Sinn Fein e com inegáveis ligações ao IRA, a visitar o Parlamento. Sempre se recusou a condenar abertamente os atos do IRA. Ainda não o fez.
Durante os anos em que foi correspondente para o “The Telegraph”, em Bruxelas, Boris Johnson também não se portou sempre bem - o choque pelo choque, e nem sempre a veracidade jornalística, nortearam muitos dos seus artigos. Escreveu colunas muito pouco simpáticas para a UE e agora não falta quem o culpe - ou lhe dê crédito - por ter tornado o euroceticismo uma moda de novo - quer na sociedade como um todo, quer no seio dos conservadores, mas Johnson apenas regou a semente que quase todos os conservadores têm bem plantada nas suas almas. Uma vez disse que os esforços da UE para unificar a Europa eram equivalentes aos empreendidos por Hitler e Napoleão. Aliás, durante os anos em que foi jornalista, e mesmo agora que escreve com frequência para a imprensa conservadora, presidiu a algumas das declarações mais polémicas da política britânica da última década - teceu comentários racistas contra os negros, elogiou o papel dos colonizadores brancos, disse que a cidade de Sirte, na Líbia, “será um Dubai assim que limpem os corpos”, e, sobre as burcas das mulheres muçulmanas, disse não entender “por que razão alguém haveria de decidir andar na rua com o aspeto de um marco do correio”. E é por isso que quando se fala de antissemitismo no ‘labour’ os vermelhos têm resposta pronta.
Johnson pode querer parecer antissistema mas ainda não é antimonárquico como Corbyn, que usou um blazer vermelho na sessão parlamentar no dia em que a Rainha Mãe morreu. A sua casa foi depois assaltada e a única coisa que os assaltantes levaram foi esse infame casaco, que arrastaram pela estrada enquanto fugiam de carro, disseram na altura algumas testemunhas. A lista não termina: escreveu no tablóide associado à extrema-esquerda “Morning Star”, é vegetariano há décadas e foi há décadas que escolheu as suas lutas - a independência da Palestina, a defesa dos governos venezuelanos e outros com parcas preocupações com os Direitos Humanos.
Mantém presente muito do que já defendia há 40 anos - facto que é ao mesmo tempo a sua maior força e o seu mais apetecível ponto fraco. Continua a dizer que algumas empresas deveriam ser impedidas de pagar dividendos a menos que paguem a todos os trabalhadores um salário digno, continua a defender a nacionalização dos caminhos-de-ferro, o controlo estatal da energia, as cooperativas como modelo ideal de negócio, os elevados impostos sobre as fortunas, a integração de saúde com a assistência social e um serviço de educação público para toda a vida.
Se tudo é minúcia e premeditação, talvez o próprio Boris não seja assim tão extremista. Nascido e criado num ambiente cosmopolita, até com um toque de boémia por parte da mãe, Boris diz dele mesmo: “Sou pelo mercado livre, tolerante, amplamente libertário (embora talvez não ultralibertário), pró-caça, pró-motorista e pronto para defender com a vida o direito de Glenn Hoddle [ex-futebolista britânico] acreditar na reencarnação”.
Veremos se os britânicos escolhem um camaleão que se adapta às dificuldades do seu ambiente ou um homem imutável, para o bem e para o mal.