Internacional

Sir Nick Carter tem uma citação preferida: “Todas as gerações têm caprichos e o nosso é querer mudar o mundo sem o entender primeiro”

O chefe de Estado-Maior da Defesa Britânico, Sir Nick Carter (à esquerda), com o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas Portuguesas, almirante Sousa Ribeiro
O chefe de Estado-Maior da Defesa Britânico, Sir Nick Carter (à esquerda), com o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas Portuguesas, almirante Sousa Ribeiro
Embaixada do Reino Unido em Portugal

O chefe de Estado-Maior da Defesa Britânico, Sir Nick Carter, tem uma missão e um itinerário: convencer as capitais europeias de que a cooperação pós-Brexit na área da Defesa é um dado adquirido. Portugal é uma paragem “especial” porque, como o Reino Unido, tem “uma vocação comerciante e atlântica”. Numa entrevista na residência do embaixador britânico, em Lisboa, diz ao Expresso que, desde que entrou na carreira militar, nunca viu o mundo tão instável

Sir Nick Carter tem uma citação preferida: “Todas as gerações têm caprichos e o nosso é querer mudar o mundo sem o entender primeiro”

Ana França

Jornalista da secção Internacional

A sua carreira acompanha os últimos 40 anos da História mundial. O comportamento das grandes potências é hoje mais imprevisível? O mundo é um sítio mais perigoso?
Estamos num ponto muito mais complexo, com dinâmicas muito mais voláteis do que em qualquer ponto dos últimos 42 anos. A condição subjacente às relações internacionais é hoje a instabilidade em vez da estabilidade.

Que razões podem justificar isso?
Muitas. A primeira é que regressámos à era da competição entre grandes poderes, parecida com a que existia na primeira década do século passado. Vemos a Rússia como uma ameaça bastante séria e a China como um problema - mas mais um desafio do que uma ameaça. Há também muitos poderes regionais que estão a tentar exercer o seu poder, no Médio Oriente, por exemplo. Subjacente a isto temos o terrorismo, uma ameaça que não existia há 100 anos. O populismo e o nacionalismo não ajudam, antes empolam tudo isto.

Depois do Brexit, como fica a colaboração na área da Defesa?
Sem dúvida que depois do Brexit o Reino Unido vai continuar tão comprometido com a segurança da Europa como até aqui esteve. Sempre foi e sempre será assim. Mas acreditamos que é a NATO que deve liderar a defesa da frente europeia. Pelo menos no tempo que me resta de vida, creio que será a NATO o maior garante de segurança.

E a Europa está a contribuir o suficiente para a NATO?
As alianças dependem de que cada membro contribua de forma justa para os objetivos dessa mesma aliança. É legítimo falar-se em maior divisão de custos, sim.

Já disse em entrevistas que o Reino Unido precisa de se redefinir depois do Brexit, precisa de saber que papel terá no mundo. Qual é, no seu entender, a prioridade?
Vamos ter de olhar mais longe do que até aqui. O que eu gostava de ver era esse tema debatido. Essa é uma decisão política e o nosso Governo fará uma revisão da Defesa em breve. O mundo está a mudar e, por exemplo, a região da Ásia e do Pacífico será imensamente importante este século. Nações com vocação comercial, como Portugal ou o Reino Unido, têm de estar presentes nessa área de crescimento.

Mark Field, até agosto deste ano secretário de Estado para a Ásia e Pacífico, fez um discurso nas Filipinas, onde o Brexit aparecia como uma forma de o Reino Unido se "libertar de certas amarras que vieram com a adesão à UE". É também esta a sua visão?
Não, não diria isso. E não creio que o nosso atual governo pense isso. Temos de ir sempre reforçando a nossa prosperidade, aqui e noutros locais também, é só isso.

As instituições que criámos depois da Segunda Guerra Mundial estão obsoletas?
Estão a ser postas à prova. Estamos a tentar lidar com esta multiplicidade de problemas e as regras que gerem a geopolítica, o chamado "Rules-based System", às quais nos habituámos, estão a ser atacadas. Por serem nações historicamente comerciais, o Reino Unido e Portugal precisam que a livre passagem de bens e serviços entre nações não esteja em risco, só que estamos a ser desafiados por países que querem impor a sua própria interpretação destas regras.

Qual é o papel das nações que ainda respeitam as regras?
As regras têm de ser revistas - refinadas, melhor dizendo. Penso que quando estamos a lidar, por exemplo, com ataques informáticos, ciberterrorismo, não há regras ainda definidas. E também não há regras quando falamos da conquista ou da exploração do espaço.

O que une Portugal ao Reino Unido, nomeadamente na área da Defesa?
Vemos as coisas de uma forma muito parecida. Temos uma associação marítima muito importante e temos de continuar a trabalhar juntos, seja bilateralmente, seja através da NATO. Gostaríamos que a Marinha portuguesa fizesse parte da escolta no nosso novo porta-aviões, por exemplo, e também creio que podemos encontrar forma de cooperar em projetos em África.

A forma de se fazer a guerra está a mudar?
Não é só a forma, é a verdadeira natureza da guerra. Passámos de utilizar material comandado por seres humanos para arsenal que funciona de forma autónoma ou comandado à distância. Vamos obviamente ter de pensar com muito cuidado se a lei que regula o conflito armado ainda está atual ou se vai conseguir dar resposta a estas mudanças.

O nacionalismo vai acabar com o sistema internacional baseado em regras?
Aqueles entre nós que aspiram a um modo de vida livre e democrático, como é o caso dos nossos dois países, têm de reconhecer que a voracidade da informação, principalmente nas redes sociais, está a polarizar o debate. Temos de evoluir e acompanhar as mudanças.

Já disse muitas vezes que as pessoas não leem o suficiente sobre a História, o que leva a que erros antigos voltem a ser cometidos. É através do estudo que podemos encontrar a tolerância?
A História não se repete mas tem um ritmo. As pessoas hoje em dia consomem informação de forma totalmente diferente. Nós líamos livros e jornais de referência e há muita gente que agora só apreende o que lhes dizem em 140 carateres e isso não é suficiente para podermos identificar os ritmos que a História tem. Há um risco nesta forma muito sumarizada de consumir notícias: lemos só o que já está de acordo com as nossas ideias iniciais, somos menos confrontados.

Qual será o papel dos exércitos, por exemplo, durante uma grave crise climática que leve a uma guerra? Há efetivos suficientes para isso? Os militares estão a ser treinados para isso?
O que os militares sabem, com muito mais certezas do que a população no geral, é que a guerra é uma coisa tenebrosa. Os nossos recursos seriam mais devidamente utilizados a tentar prevenir a guerra do que a combatê-la. O truque é aprender a prevê-la e preveni-la. A crise climática é um dos problemas que pode causar graves conflitos mas há outras, em África, por exemplo: falhas graves na educação, nas oportunidades, a sensação de exclusão. Eles sabem, através da internet, que a Europa tem algo melhor para oferecer e então migram. Para prevenirmos isso temos de investir nesses países, temos de os ajudar, aumentar os níveis de boa governação. Essa é a base para depois se construírem os sistemas de saúde, as estradas, os negócios, as oportunidades que vão fazer as pessoas querer ficar nos seus países.

É esse o grande desafio dos próximos anos?
Nos próximos 20 anos temos de mobilizar os nossos governos para que olhem para sul mas nada se melhora sem uma estratégia comum, todos temos de estar envolvidos.

Investir dinheiro em governos africanos com péssimos cadastros de usurpação dos recursos da população não é a medida mais popular do ponto de vista político.
Eu não estou a falar de dinheiro apenas. É preciso ajudar estes países a melhorarem os seus governos, estou a falar de educar as pessoas que tomam decisões, melhorar as soluções de segurança, modernizar, mostrar boas práticas governamentais. Sim, enviar pessoas para estas ações custa dinheiro mas temos de pensar primeiro nos objetivos que só serão atingidos ao longo de muitas ações. É preciso paciência.

Às vezes não é possível tê-la...
Sim, mas esta é uma mudança geracional que tem de começar já. Muitos de nós que estivemos no Afeganistão sabem que muito dinheiro foi enviado para lá mas foi mal utilizado. Precisávamos de ter investido na criação de valências pessoais e estruturais. O desafio para os nossos sistemas democráticos é que são lentos e necessitam de um pensamento estratégico e paciência igualmente estratégica.

Como é que pode ser feita essa ligação às autoridades, nomeadamente em África mas também noutros locais, como o Médio Oriente? É necessário investigar primeiro porque há o risco de que a ajuda europeia acabe por desaguar na ajuda a milícias, como na Líbia, infiltradas na Guarda Civil.
O que eu posso dizer depois dos meus três anos no Afeganistão é que colocar militares onde não existe estrutura política não resulta. O que é preciso fazer de antemão é entender em que ambiente se vão realizar as atividades de reforço das estruturas de governação, construir uma rede de funcionários públicos, por exemplo. Há uma frase que eu utilizo muito, de um professor no Kings College, Antonio Giustozzi: ‘Todas as gerações têm os seus caprichos e o nosso é o desejo irresistível de mudar o mundo sem o entender primeiro’. Isto aplica-se perfeitamente ao problema que acabou de me expor.

O Reino Unido vende armas a países cujos governos atacam de forma bárbara os direitos humanos dos seus cidadãos. Até os próprios tribunais britânicos decidiram este ano que a venda de armas à Arábia Saudita, país que martiriza interna e externamente milhões de pessoas, é ilegal. Há forma de defender isto?
Há sempre uma pergunta que todos os países têm de fazer a eles mesmos: a nossa política internacional é baseada no interesse económico ou em valores? E também: ‘Qual é a diferença entre os dois?’. O que o Reino Unido tenta fazer é vender as armas mas como um ‘pacote’ do qual também constam sessões de treino militar, ético, humanitário, jurídico.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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