A Câmara dos Comuns rejeitou na madrugada desta terça-feira, pela segunda vez, o pedido de Boris Johnson para realizar eleições antecipadas. A moção, votada já depois da meia-noite, obteve 293 votos a favor e 46 contra, mas falhou o limiar de dois terços exigidos para pôr fim à legislatura.
Com o Parlamento suspenso de terça-feira até 14 de outubro, é difícil que haja eleições antes do final de novembro.“Pedi à Câmara dos Comuns que confiasse no povo, mas eles acham que sabem mais”, acusou Boris Johnson na reação ao resultado, em tom irado. Os deputados, acrescentou, “não sabem escolher mas não deixam que outro escolham”.
Prometendo ir ao Conselho Europeu de 17 de outubro negociar um acordo “no interesse nacional”, o governante garantiu que não se deixará condicionar pelas “manobras” da oposição. Até lá, acredita, “o povo verá que foi este Governo que esteve do seu lado”.
“O primeiro-ministro só não disse que ia obedecer à lei”, retorquiu, no fim da sessão, Jeremy Corbyn, líder da oposição trabalhista, referindo-se à lei que visa evitar um Brexit sem acordo e criticando a suspensão dos trabalhos parlamentares. A seu ver, os conservadores praticam uma política de “parque infantil”. O liberal Ed Davey execrou “um dia triste para a democracia”: “Um primeiro-ministro que não quer obedecer à lei foge agora do Parlamento”.
Ian Blackford, líder parlamentar do Partido Nacional Escocês (SNP), elogiou com sarcasmo a “coerência” de Johnson, que “perdeu todas as votações a que se sujeitou” na Câmara dos Comuns. Foram seis até à data, e as vitórias zero.
Acusações recíprocas
Antes o primeiro-ministro explicara que insistia na proposta por ter ouvido o líder da oposição dizer que apoiaria a ida às urnas mal entrasse em vigor a lei contra o Brexit sem acordo. Tendo isso sucedido no próprio dia, argumentou Johnson, Corbyn teria de apoiar a ideia “pela sua própria lógica”.
Johnson acusou o chefe trabalhista e a restante oposição (sobretudo os liberais democratas e os nacionalistas escoceses) de quererem reverter o resultado do referendo de 2016, cuja realização “eles próprios aprovaram”. E anteviu os planos de Corbyn: “Caso se torne primeiro-ministro, irá a Bruxelas negociar um novo acordo, presumivelmente mantendo-nos no mercado único e na união aduaneira. Depois, virá aprová-lo ao Parlamento, convocará um referendo e fará campanha contra o seu próprio acordo, para nos manter na UE”.
O governante conservador tentou explorar as divisões no maior partido da oposição: “A maioria dos trabalhistas não quer eleições porque teme que o seu partido possa perder, mas há uma minoria que teme que possa ganhar”, afirmou Johnson, que reafirmou a convicção de que irá vencer. “Se querem novo adiamento, a única forma é obterem o consentimento dos nossos amos, isto é, do povo.”
Governo desrespeitará a lei?
Corbyn voltou a dizer que só quer ir a votos quando o cenário de saída da UE sem acordo estiver excluído. É certo que a lei entrou em vigor, mas vários membros do Executivo prometeram não obedecer-lhe. Na segunda-feira o Parlamento aceitou uma moção do líder da oposição a defender o Estado de Direito e a obrigação do Executivo de respeitar a lei.
O trabalhista citou a ministra do Trabalho, que renunciou recentemente ao cargo e abandonou o Partido Conservador, dizendo: “Deixei de acreditar que o Governo estivesse a procurar um acordo com a UE”. Recordou que os líderes europeus afirmam não ter recebido quaisquer propostas concretas do Governo de Johnson (ideia reiterada no próprio dia pelo primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, após encontro com o homólogo britânico).
“Onde estão as suas propostas de renegociação? Qual o seu conteúdo?”, quis saber Corbyn. Para Johnson, a lei apoiada por Corbyn na semana passada, a que chama “Lei da Rendição”, visou “arruinar as hipóteses de o país ter uma negociação bem-sucedida”.
O opositor respondeu às acusações do primeiro-ministro: “Se quer uma saída sem acordo, porque não procura obter mandato para tal, que hoje não tem?” Corbyn não está disposto “a arriscar o desastre de infligir uma saída sem acordo às nossas comunidades, empregos, serviços e mesmo direitos”. No último dia em que a Câmara dos Comuns funcionou antes da suspensão, Corbyn acusou Johnson de ter tomado essa decisão “para evitar qualquer escrutínio”.
Os nacionalistas da Escócia (SNP) recordaram que a líder do partido de Johnson na sua região, Ruth Davidson, renunciou ao cargo por ter divergências com o chefe. “Este primeiro-ministro perdeu a Escócia”, afirmou Ian Blackford, do SNP. “Queremos eleições, mas não nos termos do primeiro-ministro”, prosseguiu o independentista, para quem não se pode confiar em Johnson.
Clima de crispação
Este último preferiu disparar sobre a oposição, repudiando as suas “desculpas cada vez mais escandalosas para adiar as eleições até ao final de outubro, ou mesmo novembro, ou talvez até que o Inferno congele”. Esse bloqueio, disse, “custa ao país mais 250 milhões de libras [280 milhões de euros] por semana , que chegariam para remodelar mais de cinco hospitais ou dar formação a 4000 novas enfermeiras”.
Outros deputados intervieram para frisar o caos político do país ou repudiar o clima crispado que tem dominado os debates. “Ir para eleições sem ter o Brexit resolvido acarreta o risco de não resolver o Brexit nem a questão do Governo”, que é o propósito principal de chamar o povo a votar, alertou o conservador Alan Duncan.
Duncan também criticou a expulsão de 21 deputados do seu partido que na semana passada apoiaram a lei que visa travar o Brexit sem acordo. O mesmo fizeram a ex-ministra Rudd, ao demitir-se no sábado, e o antigo líder do Partido Conservador e ministro dos Negócios Estrangeiros William Hague, num artigo no jornal conservador “The Daily Telegraph”.
O escocês Blackford lastimou os gritos com que deputados conservadores tentavam abafar a sua intervenção, recordando o assassínio por motivos políticos, há três anos, da sua colega trabalhista Jo Cox, em plena campanha para o referendo do Brexit. O speaker John Bercow, homenageado por vários colegas no dia em que anunciou que abandonará cargo e Parlamento o mais tardar a 31 de outubro, interveio várias vezes para exigir respeito aos deputados.
Já a líder dos Liberais Democratas, Jo Swinson, que nos últimos dias acolheu novos deputados vindos dos trabalhistas e dos conservadores (o partido conquistou 12 assentos nas legislativas de 2017 mas tem hoje 17) assumiu a defesa da revogação do artigo 50.
Não muito longe na bancada da oposição, Mike Gapes, do Grupo Independente pela Mudança (formado este ano por ex-trabalhistas e ex-conservadores pró-UE), defendeu um segundo referendo e pediu a todos os “moderados, centristas e sociais-democratas” que se unissem nesse propósito.
Pompa pela madrugada
Encerrada perto da uma da manhã uma sessão iniciada às 14h30, os deputados não puderam ir imediatamente descansar. Para pouco depois estava marcada a cerimónia de suspensão do Parlamento, uma das raras ocasiões (a par do início de nova sessão legislativa) em que são chamados à Câmara dos Lordes.
Antes disso, será lida aos pares do Reino Unido uma mensagem da rainha Isabel II a confirmar a suspensão. Já com todo o Parlamento reunido (câmaras alta e baixa), serão enumeradas todas as leis aprovadas na sessão legislativa que se encerra. A ausência mais notada nesse rol será, é claro, a aprovação de uma qualquer forma de saída da UE.