Internacional

O que Boris inventou agora? Perguntas e respostas para entender a suspensão do parlamento britânico

O que Boris inventou agora? Perguntas e respostas para entender a suspensão do parlamento britânico
Carl Court/Getty Images

O discurso do monarca no início da sessão parlamentar é um procedimento normal mas torna-se mais controverso quando essa "pausa" significa que os deputados terão não dois meses mas duas semanas para discutir alternativas ao Brexit sem acordo. John Major caiu assim, depois de ter tentado suspender o parlamento. E depois veio o reinado longo de Tony Blair

O que Boris inventou agora? Perguntas e respostas para entender a suspensão do parlamento britânico

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Como o Reino Unido não tem uma Constituição escrita, não se pode dizer que uma suspensão parlamentar seja inconstitucional no sentido em que, em outros países da Europa, Portugal incluindo, entendemos essa palavra. Neste momento, no Reino Unido, há dezenas de académicos, advogados, deputados, no ativo e reformados, e juízes a discutir os limites e a legalidade do pedido de suspensão do parlamento - uma medida que passou de ameaça a certeza esta quarta-feira.

Há especialistas em Direito que dizem que esta movimentação de Boris Johnson pode ser politicamente questionável mas não o é do ponto de vista legal. Mas também outros que consideram a suspensão do parlamento “o mais grave abuso de poder na nossa memória recente”, nas palavras de Shami Chakrabarti, procuradora-geral dos trabalhistas, e por isso “na sombra”.

Num documento com mais de seis páginas, Shami Chakrabarti, explica as razões pelas quais este tipo de manobra estaria imediatamente sujeita a várias “providências cautelares”, uma delas é precisamente a possibilidade de que os parlamentares possam sentar-se a discutir planos para evitar um Brexit sem acordo. Mas não é só do lado da oposição que se levantam problemas. Dominic Grieve, deputado conservador, chamou à intenção de Boris Johnson “um ato chocante” e avisou que esta decisão pode levar a um voto de não-confiança. “Este governo vai cair”,vaticinou o conservador que defende um segundo voto sobre o Brexit.

Mesmo com todas as críticas, esta manobra existe e já foi usada outras vezes: tem consequências políticas mas não é ilegal. É sim, sempre controversa, e, em 1997, levou à queda do governo conservador de John Major, um homem que já prometeu uma batalha legal contra Boris Johnson para o impedir de cometer o mesmo erro.

O que significa a expressão “proroguing parliament”?

Significa a suspensão do parlamento pela rainha a pedido do Conselho Privado (na prática, o governo do dia). Termina a actual sessão parlamentar e nenhuma das assembleias permanecerá até que o parlamento seja oficialmente aberto para a nova sessão. “Nem deputados nem lordes podem formalmente debater a política e a legislação do governo, apresentar perguntas parlamentares para resposta dos departamentos governamentais, escrutinar a actividade governamental através de comissões parlamentares ou introduzir legislação própria”, lê-se na própria página oficial do parlamento britânico. A atual sessão tem 340 dias: em 400 anos, só a sessão de 2010-2012 esteve perto de ser tão grande, com uma duração de 250 dias.

Para pedir à rainha o encerramento do parlamento até 14 de outubro, Boris Johnson, pediu aconselhamento legal ao procurador-geral do país, Geoffrey Cox, sobre os imbróglios legais que esta manobra lhe podia valer - o que mostra que esta protelação do início do ano parlamentar não é assim um facto tão “normal” como escreveu esta quarta-feira no Twitter o presidente dos conservadores, James Cleverly.

Quais as questões legais que levam tanta gente a criticar este mecanismo?

Em primeiro lugar a suspensão impede os deputados de agir. Neste caso contra a eventualidade de uma saída sem acordo que muitos acreditam poder prejudicar a economia britânica e o nível de vida dos cidadãos. Com o parlamento fechado é impossível colocar na agenda qualquer assunto para ser discutido.

Já se escreveu muito sobre se o pedido para que a rainha atrase o início das sessões parlamentares vai ou não contra alguns princípios da primazia parlamentar britânica, mas as respostas taxativas são poucas. Há vários pontos que podem colocar em causa esses princípios como sejam, em primeiro lugar, o facto de este pedido potencialmente frustrar a vontade parlamentar e o facto de trazer a rainha para a arena política.

Também não há consenso sobre se a rainha teria ou não que aceder a este pedido do governo ou se pode recusar-se a aceitar. O que está em causa é se o parlamento tem ou não mais importância do que o executivo - ambos são órgãos eleitos e neste momento Boris tem uma maioria de um deputado se excluirmos os unionistas irlandeses. Mesmo que esse número seja contado, não existe uma maioria parlamentar para a aprovação de uma saída sem acordo, o que torna esta manobra, aos olhos de muitos críticos, uma “imposição” do poder executivo sobre o legislativo.

Já há alguém a lutar em tribunal para impedir esta ação?

Há quem tenha prometido fazê-lo. Gina Miller, a célebre advogada que desde o início luta contra o Brexit e que já interpôs outras ações judiciais para impedir a sua progressão e John Major, ex-primeiro-ministro britânico. E em apenas três horas, uma petição contra a suspensão parlamentar ultrapassou as 200 mil assinaturas.

E o que dizem alguns dos especialistas sobre o assunto?

O apoio de peso à tese da ilegalidade parte de David Pannick, um conhecido advogado e membro da Câmara dos Lordes. Num artigo no “The Times”, Pannick resume em três pontos essenciais o seu argumento: primeiro afirma que suspender o parlamento iria contradizer a soberania parlamentar; em segundo lugar alega que a urgência da situação tornaria a prorrogação ilegal; e, em terceiro, que este pedido à rainha “visa fugir à ação parlamentar quando o parlamento já deixou claro o desejo de evitar um Brexit sem acordo”.

Também para Catherine Haddon, do Instituto para a Análise do Governo, esta suspensão aparece como “uma movimentação bastante óbvia para tentar encurtar o tempo disponível para que os deputados possam fazer alguma coisa para impedir o ‘no-deal’”, disse a especialista à BBC.

Já Robert Craig, professor de Direito Constitucional e membro da Associação de Estudos Constitucionais do Reino Unido escreveu na página da associação que os argumentos de Pannick são “vagos”. “Expressões como ‘evasão ao debate e ao escrutínio político’ não são argumentos jurídicos e parece-me pouco provável que algum tribunal vá considerar esta suspensão ilegal baseando-se apenas na possibilidade de que essa prorrogação possa vir a frustrar a passagem de um ato parlamentar que não existe ainda e que pode ser levado à Câmara, quem sabe, num futuro próximo”.

Há algum antecedente legal para esta tentativa de Miller e Major?

Há. E é recente, ou seja, já em “era Brexit”. Há dois anos, a mesma Gina Miller conseguiu que o Supremo Tribunal forçasse o Governo a fazer aprovar, primeiro no parlamento, o artigo 50, aquele que, no Tratado de Lisboa, estabelece a possibilidade de que um país possa sair da UE. Esse julgamento estabeleceu um precedente constitucional de enorme alcance: cimentando a soberania parlamentar, o tribunal decidiu por maioria de oito juízes para três que os deputados teriam de dar o seu consentimento antes que o governo pudesse acionar o artigo 50 e formalmente iniciar o Brexit.

Que outros exemplos existem de suspensão dos trabalhos parlamentares?

Alguns, mas só três no século XX e nenhum no século XXI. Imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, o governo trabalhista de Clement Attlee decidiu alterar o Ato Parlamentar de 1911 para reduzir ainda mais o poder dos Lordes, já que tinha medo que o seu plano megalómano de nacionalizações fosse colocado em causa pela Câmara Alta. Um projeto de lei foi aprovado em 1947 para reduzir o tempo que os Lordes poderiam atrasar as contas, de três sessões ao longo de dois anos para duas sessões ao longo de um ano. Os Lordes tentaram bloquear essa mudança e o projeto de lei voltou a ser introduzido em 1948 e novamente em 1949, antes que o Ato de 1911 fosse finalmente usado para forçar esta nova lei. Como o Ato de 1911 exigia um atraso de mais de três "sessões", uma "sessão" especial do Parlamento foi introduzida em 1948, com Discurso do Rei em 14 de setembro de 1948 e a suspensão em 25 de outubro de 1948.

Em 1997, o então primeiro-ministro e líder dos conservadores, John Major suspendeu o parlamento para evitar que se debatesse no parlamento o relatório da Comissão Parlamentar sobre o escândalo “cash for questions”. A “bomba” foi lançada pelo “The Guardian” que descobriu que um famoso lobista conseguiu subornar dois parlamentares conservadores para colocarem questões, no parlamento, enviesadas a favor do então dono do Harrods, o egípcio Mohamed Al-Fayed. A prorrogação aconteceu na sexta-feira, 21 de março, o que desencadeou uma eleição geral em maio, e um novo governo: o do trabalhista Tony Blair.

Quais as opções em cima da mesa para os deputados que querem parar o “no deal”?

É possível que os deputados tentem assumir o controlo do programa parlamentar e reservar tempo para aprovar uma nova lei que impediria um acordo. Philip Hammond, que serviu Theresa May como ministro das Finanças e que já declarou que a intenção de Johnson é “uma vergonha inconstitucional”, está “confiante” que os parlamentares “vão ser capazes de aprovar leis para expressar sua oposição a uma saída sem acordo”.

Qualquer legislação, se aprovada, pode forçar o governo a solicitar outra extensão do prazo para a implementação do artigo 50. Isto será difícil porque quem controla o agendamento é o governo, mas é possível que os deputados optem por exercer pressão. Há outras formas pelas quais os deputados rebelados podem assumir o controlo, por exemplo através de debates de emergência, que são concedidos pelo Presidente da Câmara dos Comuns e geralmente não são vinculativos.

Mas mesmo que os parlamentares conseguissem aprovar a legislação, não há garantia de que o governo seguiria as indicações. A BBC dá este exemplo: ignorando a lei até dia 31 e não pedindo a extensão do prazo, o “no deal” aconteceria na mesma mas ignorar o parlamento pode levar o governo a tribunal por desrespeitar a vontade dos parlamentares eleitos. Alternativamente, o governo do Reino Unido pode fazer o pedido de extensão, mas depois recusar-se quaisquer termos que a UE possa estabelecer para conceder qualquer extensão do Brexit. “Em tal cenário, o governo poderia argumentar que cumpriu a lei, mas ainda assim retiraria, sem acordo, o Reino Unido da UE em 31 de outubro”, informa a editora de política da BBC numa explicação publicada esta terça-feira na página da televisão pública britânica.

A rota número dois é mesmo avançar para derrubar o governo. É a “bomba” mas se suficientes deputados consideraram que o Reino Unido está em perigo se sair sem acordo da Europa podem unir-se numa moção de censura, que pode ser apresentada já a 4 de setembro. Jeremy Corbyn, líder dos trabalhistas, já disse que vai pedir um voto de não-confiança “o mais cedo possível”.

A rainha pode recusar-se a aceder ao pedido do governo?

Joelle Grogan, professora de Direito da Universidade de Middlesex, em Londres, considera possível. Num texto para o blogue de discussão da atualidade da London School of Economics, escreveu que “se no tempo entre o pedido de suspensão e o exercício do poder real existirem votos ou provas da objeção clara do parlamento a essa suspensão, a rainha pode recusar seguir o conselho do governo”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate