Porque é que o atirador do massacre de El Paso escolheu a 8chan para publicar o manifesto?
Kacper Pempel/Reuters
A plataforma 8chan é a evolução desregulada e libertária da 4chan. A Cloudflare, a empresa que garante segurança e distribui conteúdos à escala global, anunciou esta segunda-feira que rompeu com a 8chan. Luís Grangeia, especialista em segurança informática, e Pedro Veiga, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e ex-coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança, explicam o fenómeno que até mete ao barulho a princesa Diana
A ideia até surgiu numa viagem iluminada por cogumelos psicadélicos e era tudo para ser uma utopia no território da liberdade da expressão. Um Eldorado do verbo. Foi assim que Frederick Brennan imaginou o 8chan, uma versão supostamente melhorada do 4chan, menos controlada (ou, como lhe chamou o “Washington Post”, uma versão “mais ilegal, libertária e livre do 4chan”). A ironia é que a fantasia de Brennan venceu: todos os discursos cabem no 8chan. Até o de ódio. Foi ali, naquele palco da narrativa racista e por aí fora, que viveu a promessa de sangue por derramar. Patrick Crusius, de 21 anos, partilhou no 8chan um manifesto em que mencionava uma “invasão hispânica” no Texas.
Pouco depois, mataria 20 pessoas e deixaria feridas outras 26 no Walmart, em El Paso, no Texas, muito perto do México.
O 8chan, a plataforma onde são plantados e crescem os tais discursos de ódio, transformou-se numa gruta para os extremistas. Um refúgio que faz eco. Segundo este artigo do “The New York Times”, outros dois grandes massacres em 2019 foram anunciados previamente naquele site. De mão dada com o racismo, tornaram-se manifestos sedutores para muitos utilizadores nas redes sociais, que as propagam pelo mundo.
A empresa que garantia a distribuição de conteúdos a nível global e a segurança do site, a Cloudflare, anunciou esta manhã que ia cancelar aquele serviço de mensagens.
Qual era o papel da Cloudflare nesta história? “Imaginemos que eu faço um site e que, de repente, é famoso a nível mundial”, explica ao Expresso Luís Grangeia, especialista em segurança informática. “Em muito pouco tempo, o meu computador, alojado ali no Prior Velho, no data center, deixa de conseguir servir pedidos. É impossível. Se tiver milhões e milhões de pessoas a aceder, é impossível.”
Ou seja, “a Cloudflare tem uma estrutura muito grande espalhada pelo mundo, muitos computadores, e o que faz é content deliver network [CDN: rede de distribuição de conteúdo]. Eu posso inscrever o meu site na Cloudflare, aponto para lá o meu site e a empresa vai buscar uma cópia do meu site e começa a distribui-lo pela sua rede de distribuição de conteúdos. Eu tinha apenas um PC a distribuir aquele site, mas, a partir do momento que o registo na Cloudflare, é possível a qualquer pessoa do mundo, a muitos milhões de pessoas ao mesmo tempo, acederem ao meu site sem este ficar congestionado.”
Kacper Pempel/REUTERS
A Cloudflare, ou as empresas do género, é o músculo destas plataformas. Dá-lhes potência, capacidade de gerar tráfego massivo, de chegar a todo o lado mais rapidamente. A origem deste tipo de empresas nasceu principalmente em setembro de 1997, explica ao Expresso Pedro Veiga, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e ex-coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança. “Quando a princesa Diana morreu, o site da CNN foi bombardeado por muitos pedidos de pessoas que queriam saber mais. O site colapsou. Não conseguiu responder a tantos pedidos, que vinham de muitos sitios do mundo para o site da CNN, em Atlanta. Começaram então a surgir empresas que forneciam equipamentos que faziam as CDN. Basicamente, o que fazem é distribuir servidores em vários sítios do mundo, usando a cloud.”
Este tipo de conteúdos só tem de atravessar essa estrada da ligação entre origem e destino uma vez. Isto é, se um português vai buscar uma nova série de uma qualquer plataforma, essa série fica disponível para os outros clientes portugueses, já que essa viagem só acontece uma vez. É isso que fazem as empresas que oferecem CDN. “É bom para a empresa porque não lhe ocupa tanto os circuitos internacionais”, continua Veiga. “Se tiverem 10 mil clientes em Portugal, só um conteúdo é que atravessa o Altântico, e todos os utilizadores acedem localmente.”
Mas há uma desvantagem.
“Os casos de terrorismo", continua Veiga. "Se, por uma razão qualquer, quiserem remover o conteúdo, não basta remover do servidor dos Estados Unidos. O problema é que havia cópias numa grande quantidade de sítios do mundo. É o que acontece no terrorismo. Os malucos contratam serviços de cloud para que o seu conteúdo seja distribuído rapidamente pelo mundo inteiro, mas depois, quando se cortar o conteúdo, ainda haverá, durante um certo tempo, réplicas espalhadas pelo mundo. É o problema das content delivery network, que são extremamente eficazes para distribuir conteúdos numa base geográfica muito distribuída.”
Mais: serviços como o da Cloudflare permitem que seja impossível descobrir a origem do site. “Se houver uma queixa, a Cloudflare recebe um mandado policial e terá de dar os dados do cliente”, diz Grangeia. “Mas até lá mascara a origem do site, para evitar que o original seja atacado, faz parte do desenho do sistema. Se a Cloudflare é responsável pelo site e conteúdos? Acho que não, mas tem de estar mais coordenada com as autoridades e as autoridades têm de estar mais em cima…”
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Este tipo de empresas como a Cloudflare não promove sites como o 8chan, não gera tráfego, muito menos é uma montra, garante Luís Grangeia. Não traz ninguém associado. Apenas funciona como os tentáculos que fazem chegar o conteúdo a todo o lado. Rápido. E com segurança: “Além de fornecer este tipo de serviço de escalabilidade, protegem contra ataques de negação de serviço. É muito mais difícil eu mandar abaixo e atacar um site, encontrar buracos de segurança, ou lançar um ataque daqueles de negação de serviços, se estiver suportado na Cloudflare, que tem capacidade de deteção e proteção contra ataques de segurança.” Simplificando: um ataque de negação de serviço é uma espécie de sabotagem, um ataque orquestrado para entupir um serviço ou um site. Imaginando no mundo real, seria um grupo de 200 pessoas entrar numa loja e colocar-se nas filas para entupir o normal desenrolar da vida daquele negócio.
“A Cloudflare é uma empresa muito grande”, continua o especialista em cibersegurança, explicando a alma deste comércio do século XXI. “Se quiser proteções contra ataques de negação de serviços, vou ter de pagar. Qualquer pessoa pode ter o site na Cloudflare, é assim que eles ganham dinheiro. A distribuição de conteúdos é um negócio muito grande. O Facebook é cliente de um distribuidor de conteúdos, julgo que a Akamai. É um negócio grande, há muitas empresas e dá muito dinheiro. Eles têm 200 pessoas em Londres e vão abrir escritório em Lisboa. Têm centenas de máquinas espalhadas pelo mundo, têm clientes muito grandes. Há empresas tão grandes que têm o seu próprio CDN, a Google penso que tem…”
Terroristas como Patrick Crusius sabem que estas plataformas como a 8chan garantem uma cola internáutica espessa e, para muitos, irresistível. Não é por acaso que é ali que anunciam ao mundo a tragédia que estão por cumprir. “Eles usam as plataformas porque querem espalhar o conteúdo o mais rápido possivel”, explica Pedro Veiga. “As CDN são extremamente eficientes a distribuir conteúdos numa escala global. O operador da CDN pode remover o conteúdo, mas é um trabalho que tem de ser feito quase manualmente e que demora algum tempo. As redes são feitas para distribuir e manter conteúdos.”
Uma coisa é certa para Luís Grangeia: “Se a Cloudflare rejeitar [escudar este tipo de plataforma], haverá outras empresas que aceitarão. Há várias formas de uma 8chan, sendo ilegítima e com conteúdos ilegais, colocar coisas na Internet, mas era mais difícil sem a Cloudflare. Acaba por tornar o site bastante resiliente e global.”