As exigências dos Haredim impediram Netanyahu de governar uma quinta vez. Quem são “aqueles que tremem” ao ouvir a palavra de Deus?
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“Eles chamam-se a si mesmos Haredim, palavra que deriva dos verbos bíblicos que aparecem no livro de Isaías e que podem ser traduzidos como ‘aqueles que tremem ao ouvir a palavra de Deus’. A palavra tem uma conotação de temor a Deus e ao mesmo tempo de uma enorme ansiedade para realizar a Sua vontade”
Quando os primeiros resultados começaram a chegar às televisões na noite de 9 de abril, Benjamin Netanyahu, na altura primeiro-ministro israelita a lutar pela reeleição, e Benny Gantz, ex-general das Forças de Defesa Israelitas (IDF) e aspirante ao mesmo cargo, apareciam quase empatados. Pelas ruas de Jerusalém, onde Netanyahu tem uma das suas maiores base de apoio, correu um arrepio e aquele som abafado de surpresa que às vezes perpassa um estádio quando a equipa da casa quase marca um golo. Mas à medida que a noite se foi prolongando, a realidade tornou-se mais próxima da que tinha sido antecipada pela maioria dos analistas: seria mesmo Netanyahu, com a sua facilidade em agregar forças à direita, incluindo os ultrarreligiosos, a formar governo. O seu quinto.
Para ter uma maioria no Knesset, o parlamento israelita de 120 assentos, são precisos 61 deputados. Netanyahu não os tem. Falta-lhe um. Avigdor Liberman, um dos muitos veteranos políticos da direita que sonham com o lugar de ‘Bibi’, tem cinco preciosos assentos, mais quatro do que aqueles de que Netanyahu precisava, mas recusou-se a oferecer-lhos. Liberman e Netanyahu foram aliados mais tempo do que foram rivais: Liberman já foi chefe de gabinete de Netanyahu, seu ministro dos Negócios Estrangeiros e também já teve a pasta da Defesa.
Mas, desta vez, o partido de Liberman, o Yisrael Beytenu, decidiu comprar uma guerra e impedir a formação de uma coligação. Como ultranacionalista secular que é, Liberman está contra a exceção concedida aos membros da comunidade ultraortodoxa (os Haredim) de ingressarem no exército israelita. Liberman insiste na aprovação sem emenda de um projeto de lei apoiado pelas IDF (Israel Defense Forces) que aumenta a participação ultraortodoxa no serviço militar (o projeto foi aprovado na sua primeira leitura no último Knesset). Atualmente, apenas cerca de um décimo dos cerca de 30 mil homens ultraortodoxos elegíveis se alistam por ano nas IDF; o projeto defendido por Liberman especifica um aumento gradual para os 6.000 recrutas por ano. Liberman defendeu a sua posição dizendo que o seu apoio é “a um governo de direita, não um governo no qual os ultraortodoxos decidem”.
Avigdor Liberman e Netanyahu quando ainda se ajudavam, pelo menos eleitoralmente, um ao outro
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Mas nem toda a gente acredita que esta luta de Liberman seja mesmo pela “inclusão dos ultraortodoxos na sociedade” ou, por outro lado, “contra a discriminação dos seculares que suportam o serviço militar sozinhos”. Para alguns analistas, a jogada é puramente política. Yagil Levy, professor da Open University de Israel cuja investigação se debruça maioritariamente sobre as relações entre a sociedade israelita e o serviço militar obrigatório, diz ao Expresso que a questão da obrigatoriedade do serviço militar é a única arma de Liberman, o único argumento que ele pode desembainhar para fazer cair Netanyahu: “O assunto da requisição obrigatória dos ultraortodoxos está na mira do debate desde o fim dos anos 90. É um assunto que se tornou simbólico da discriminação dos cidadãos seculares em prol dos religiosos e como está carregado de simbolismo é o pretexto perfeito para Liberman, que quer combater politicamente o seu oponente”.
Quando o fundador do Estado de Israel, David Ben-Gurion, pouco depois do nascimento do país, em 1948, isentou os Haredim de participarem na vida militar para “preservarem o estudo da religião e a forma de ser dos judeus”, a ideia não era que isso se mantivesse para sempre. Sucessivos ministros da Defesa foram protelando a compra de uma guerra certa com a comunidade ultraortodoxa e assinando, a cada legislatura, isenções do cumprimento do serviço militar. Todos os (outros) homens israelitas têm três anos obrigatórios de serviço militar para cumprir assim que atingem os 17 anos e ficam na reserva até aos 51 anos. As raparigas cumprem dois e estão na reserva até aos 24.
Os Haredim, uma comunidade com um milhão de membros, não são obrigadas a ir para o exército e também muitas vezes não trabalham, tal a dedicação aos escritos do livro sagrado, a Torah. Basta passar os olhos pelas páginas de opinião dos jornais israelitas dos últimos dias para entender que, no seio da sociedade secular, há pouca paciência para estas excepções. “É assim que se vive numa ‘minoritocracia’. Tudo está distorcido. A minoria, que constitui apenas 12% da população e 11% dos membros do Knesset, domina a maioria. Políticos ultraortodoxos, o ministro da Saúde, Yaakov Litzman, o deputado Moshe Gafni, do Partido do Judaísmo da Torah, e o ministro do Interior, Arye Dery, do Shas, estão a impor a sua visão do mundo ao resto dos habitantes - e a maioria, representada pelo Likud, está a aparar todos os seus caprichos”, escreveu no diário “Haaretz” o jornalista conservador Nehemia Shtrasler.
Judeus ultraortodoxos não reconhecem o Estado de Israel e por isso defendem o direito dos Palestinianos à terra onde está Israel
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Segundo Levy, a questão do serviço militar obrigatório “não é assim tão importante para maioria da população porque toda a gente em Israel sabe que não há igualdade no recenseamento”, mas, continua o professor, “é a única coisa que separa Liberman de ‘Bibi’ e por isso é único assunto que lhe dá a oportunidade de legitimar a sua escolha em não se juntar ao governo”. E oferece um exemplo de um outro assunto que podia ser igualmente divisivo mas que não funciona: “Ele não pôde dizer ‘não me juntei ao Bibi porque ele não destruiu o Hamas em Gaza’, porque Liberman sabe que isso é um pedido irrealista. O assunto do recrutamento cria uma distinção nítida entre o cidadão cumpridor - o que vai à recruta, paga impostos, participa no mercado de trabalho - e o religioso - que não participa na economia porque está sempre a estudar as escrituras, não educa os filhos, não os manda para o Exército. Esta ideia sobre os Haredim não é muito correta, eles não são todos assim, mas é essa ideia que é perpetuada”, diz ainda Yagil Levy.
Nehemia Shtrasler é duro com a comunidade Haredim mas mais duro ainda é David Rosenberg, editor de Economia, Tecnologia e Finanças também no “Haaretz”. O problema que Rosenberg isola nestas “exceções” não tem apenas que ver com o exército - que não precisa de mais membros e muito menos recebe bem os Haredim - mas com toda a forma de vida reclusiva que a comunidade preserva. “Não é como se os Haredim fossem cidadãos de segunda classe privados das mesmas oportunidades dadas aos outros israelitas. Este fenómeno pode mesmo ser único no mundo, pelo menos nesta escala demográfica. Israel é o lar de um milhão de pessoas que recusam uma boa educação para os seus filhos e recusam trabalhar por princípio. De acordo com o Relatório Estatístico de 2018 da Haredi Society, em 2065 os Haredim podem ser perto de um terço da população e é difícil imaginar como Israel pode sobreviver, muito menos prosperar, se um terço for pobre, desempregado e sem instrução”, escreveu Rosenberg depois de terem sido convocadas novas eleições para 17 de setembro, precisamente por causa da questão da “exceção” religiosa.
Nurit Stadler, autora de vários estudos sobre a comunidade ultraortodoxa e professora de Antropologia e Sociologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, discorda totalmente: “Como antropóloga, vejo essas comunidades como comunidades especiais que tentam defender a sua própria cultura, costumes e símbolos. Eles veem-se como guardiões do verdadeiro judaísmo, da tradição, dos textos judaicos que, no seu entender, quase desaparecem no Holocausto. A ideia do modelo ascético dos homens estudiosos está no coração dessa cultura”.
A maioria das democracias contemporâneas consagram alguma forma de “separação de igreja e Estado” na Constituição. Mas Israel não tem uma constituição, e porque o termo ‘judeu’ se refere tanto uma religião quanto uma nacionalidade, os conceitos entrelaçam-se. No seu estudo “Israel tem um problema judaico”, Joyce Dalsheim, antropologista da Universidade da Carolina do Norte, descreve o receio que sentiu ao entrar nos bairros de judeus ultraortodoxos, bastante restritos no que toca à igualdade de género, e cita membros da comunidade que se sentem como israelitas de terceira categoria. Uma das passagens: “Quando ele me disse que vive num gueto, estava a ser sincero, mas também provocador. Os ultraortodoxos em Israel geralmente vivem em bairros segregados que lembram a alguns deles os guetos da Europa. Os judeus seculares em Israel falam depreciativamente desses bairros e das pessoas que moram lá. Dizem que são retrógradas, que as mulheres não são respeitadas, que têm um grande número de crianças e como não trabalham para se dedicarem ao estudo religioso são parasitas. Este tipo de caracterização é muito semelhante às expressões antissemitas ou antijudaicas usadas durante o nazismo”.
“Eles estão isolados por opção, é assim que eles mantêm a cultura e a comunidade isoladas. Claro que isto não é possível, uma comunidade nunca é totalmente fechada, mas tentam usar tabus sociais e instituições especiais para recriar isso. Eles chamam-se a si mesmos Haredim, palavra que deriva dos verbos bíblicos que aparecem no Livro de Isaías e que podem ser traduzidos como ‘aqueles que tremem ao ouvir a palavra de Deus’. A palavra tem uma conotação de temor a Deus e ao mesmo tempo de uma enorme ansiedade para realizar a Sua vontade”, diz Nuir Stadler. Não se veem como parasitas porque “trabalham no duro, não no mercado de trabalho ou no exército, mas da mesma forma, com o mesmo esforço, investem tudo nos estudos religiosos”. “É claro que a maioria dos israelitas não gosta deles porque eles não servem no exército, mas o que é preciso entender é eles não funcionam de acordo com a percepção moderna.”
Depois de a lei que obriga os Haredim a inscreverem-se no Exército ter passado na generalidade, as ruas encheram-se de protestos da comunidade ultraortodoxa. Coisa que se repete há vários anos. Em 2014, milhares de pessoas saíram à rua em Jerusalém: um manto de negro, cor das vestes tradicionais dos ultraortodoxos, encheu as ruas principais da cidade até ao intransitável. Para os judeus Haredi, o que está em jogo é a sua forma de vida, ou mesmo a própria sobrevivência, porque é isso que a religião significa para um grupo de pessoas que lhe são tão apegadas. O exército israelita é a casa-mãe do secularismo, do nacionalismo e do desdém pelo modo de vida dos Haredi. O exército é um caldeirão de identidades do qual, no fim, é suposto sair o “israelita tipo”, comprometido com a defesa do Estado.
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Só que os mais ortodoxos entre os ortodoxos nem sequer reconhecem a existência do Estado de Israel. Uma fotografia tirada em Nova Iorque, em frente à ONU, durante a 73ª sessão da assembleia geral, mostra um menino judeu ortodoxo com as patilhas encaracoladas e o seu pequeno quipá a segurar um cartaz que diz “não ao sionismo, sim ao judaísmo” e “o Estado judaico tem de desaparecer”. Por cima dos ombros carrega o lenço universalizado por Yasser Arafat. Ao seu lado vê-se um adolescente com uma tira de seda com as cores da Palestina.
Parece um contrassenso que uma comunidade tão ferozmente judaica se mostre publicamente apoiante da causa palestiniana, mas a razão para isto mostra bem o quão profundamente religiosos são os Haredim: não acreditam num Estado judaico porque o Messias, que, no entender judaico, ainda não desceu à Terra, é o único que pode dar aos judeus um Estado - os homens não podem defini-lo, não podem usurpar terra a quem já lá estava, não podem querer ser Deus. “É uma parte muito pequena, muito extremista da população que pensa assim. São antissionistas e no passado foram muito próximos dos movimentos de libertação da Palestina. Não reconhecem o Estado de Israel, dizem que o estabelecimento do Estado foi um esforço secular, não um desígnio de Deus, e por isso recusam envolver-se nas instituições do Estado, utilizar o Estado. Mas são uma minoria muito pequena mesmo”, resume o professor da Universidade Aberta de Israel.
Quanto ao resultado das legislativas marcadas para 17 de setembro, Levy diz que “ainda é muito cedo para analisar o impacto deste tema” e, por isso, “é impossível saber se será Netanyahu a beneficiar com um voto reforçado”, até porque “há uma grande raiva contra o primeiro-ministro porque as pessoas não entendem porque é que ele deixou cair o Parlamento e agora têm de ir votar de novo”. O que pode acontecer é um reforço do voto árabe, já que a antiga “Lista Conjunta”, uma coligação de vários partidos representantes dos interesses árabes, pode vir a ser ressuscitada para estas eleições.
A questão do sentimento de exílio mesmo vivendo em Israel é referido em muitos dos estudos conduzidos sobre a comunidade Haredi. Num país moderno, inundado de tecnologia e startups, o que alguns judeus ultraortodoxos desejam é mudar o mundo o menos possível. Casa deixa de ser casa e muitos escolheram mesmo migrar. Vem à memória aquela definição de casa de Robert Frost: “Casa é aquele sítio onde, se aparecermos lá, as pessoas que lá estão são obrigadas a receber-nos”. Os Haredim já não pensam todos assim quando pensam em Israel.
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