O mais jovem governante da Europa caiu mas vai voltar. E a extrema-direita mais expressiva da Europa Ocidental volta também?
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Sebastian Kurz, atualmente com 32 anos, estava no poder desde 2017 e era o mais jovem chefe de Governo do mundo em exercício. Foi alvo de uma moção de censura no parlamento austríaco, esta segunda-feira, e caiu. O que o levou à queda é uma história que tem de ser contada - e lida
São quase seis horas de conversa cândida, desprendida por vários litros de álcool. Heinz-Christian Stratche, o agora demissionário mas na altura líder do Partido da Liberdade (FPÖ, de extrema-direita) e parceiro de coligação do chanceler Sebastian Kurz no governo austríaco, está sentado numa casa em Ibiza e discute a possibilidade de viabilizar lucrativos contratos públicos a oligarcas russos se estes, em troca, comprarem uma parte do jornal Kronen Zeitung e o transformarem num veículo de propaganda ao FPÖ. No vídeo ouve-se Stratch dizer que “alguns jornalistas teriam de ser afastados” do jornal e que o ideal seria “construir um império de meios de comunicação como o de Orbán”, numa referência ao primeiro-ministro húngaro, conhecido pelas suas manobras de condicionamento editorial dos meios de comunicação.
Isto já seria bastante sério mesmo sem a parte ridícula: a mulher que aparece no vídeo a falar russo afinal não é sobrinha de nenhum oligarca a quem se possa pedir favores em trocas de outros. A sua identidade é falsa e já se fala de uma armadilha. Uma armadilha montada pelas “elites liberais”, mas já vamos à parte em que se explicam as razões da robustez da extrema-direita na Áustria.
Heinz-Christian Stratch demite-se e é Norbert Hofe, número dois e ex-candidato presidencial que chegou a conseguir 49% dos votos pela extrema-direita, que segura as rédeas do partido. Ainda não estava nem há duas semanas no cargo quando agiu como se o FPÖ não fosse parte de uma coligação com o Partido Popular (ÖVP) e votou ao lado de uma moção de censura apresentada pelos sociais-democratas, esta segunda-feira.
Um estranho aperto de mão entre inimigos - a extrema-direita e os sociais-democratas - fez tombar o mais jovem governante europeu, Sebastian Kurz, de 32 anos. “O chamado escândalo ‘Ibizagate’ significa que Kurz será forçado a procurar coligações futuras com outras forças que não o FPÖ. O facto de ele próprio sobreviver a este escândalo sem grandes perdas políticas mostra bem o seu talento, apesar de não ter muitos anos de política”, diz ao Expresso Peter Kreko, diretor do centro de análise política Political Capital Institute.
Heinz-Christian Stratch, o homem que aparece num vídeo a oferecer à alegada sobrinha de um oligarca russo contratos públicos lucrativos em troca de favores políticos
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O governo colapsou depois de Kurz pedir ao presidente da Áustria a demissão do ministro do Interior, Herbert Kickl, coisa que Alexander Van der Bellen fez, desencadeando então a demissão em massa de todos os outros membros do FPÖ que ocupavam pastas ministeriais no governo de Kurz. Ainda assim, a Kurz não parece faltar apoio junto da população, o que justifica a sua imediata vontade de avançar para a realização de eleições gerais já em setembro. Nas europeias de domingo, o ÖVP, que ele refez à sua imagem moderna, organizada, conservadora mas europeísta, aumentou bastante o voto, conseguindo um total de 34,9%, ou seja, sete lugares. Os sociais-democratas conseguiram cinco e o Partido da Liberdade três.
Pela primeira vez, a Áustria pode vir a ter um governo interino feito quase exclusivamente de especialistas académicos em diversas áreas, tecnocratas no fundo, uma opção que Kurz não quer aceitar mas a decisão depende do Presidente, que enfrenta pressão do bloco social-democrata para nomear pessoas precisamente com esse perfil e afastar Kurz pelo menos até à próxima eleição, que pode voltar a levá-lo ao poder de novo.
A extrema-direita sai desacreditada do escândalo? A História prova que não
A coligação caiu mas é pouco provável que as ideias do FPÖ fiquem enterradas para sempre debaixo dos escombros. Alguns analistas políticos das alas mais à esquerda apressaram-se a vaticinar tempos difíceis para o Partido da Liberdade, que sempre fez campanha contra a corrupção instalada dos partidos do sistema, contra a rotatividade de favores, contra a endogamia financeira. Afinal, agora são iguais aos outros. Mas é uma ilusão pensar que este escândalo é o seu epílogo. A história do partido é uma história de resiliência e as sondagens mais recentes, feitas já depois de conhecido o vídeo, mostram uma queda de popularidade de apenas 5 pontos (de 23% para 18%), o que é perfeitamente recuperável. “No futuro, este escândalo pode deixar os partidos mais moderados de pé atrás em aceitar colaborações com partidos extremos, mas o sucesso de Kurz também pode significar que é possível sobreviver-lhes. O FPÖ era um membro notório do bloco de Salvini, o que acaba por deteriorar a imagem desse grupo um pouco”, diz Kreko.
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Demoramos algum tempo a convencer Michael Bonvalot de que quem lhe escreve do Expresso seja mesmo do Expresso. Com uma carreira feita de artigos de investigação sobre a extrema-direita austríaca, incluindo sobre como é que ela se financia, conclusões que expõe no livro “FPÖ: The Party of the Rich”, Bonvalot já teve a sua fotografia associada a todo o tipo de escândalos, fake news, já sofreu abusos frente-a-frente e nas redes sociais. Finalmente liga-nos pelo Whatsapp, onde não tem uma fotografia e explica isto tudo. E também explica as razões do poder do FPÖ na Áustria: “A sua base é forte e antiguíssima, é uma das mais sólidas de toda a Europa Ocidental e não vai dispersar assim por qualquer coisa. Se olharmos para os resultados das europeias, que já foram depois do escândalo, notamos que eles desceram apenas de 19% para 17%, isto apesar de o FPÖ não ter qualquer manifesto em relação à UE, nunca fazer campanha - e, mesmo assim, a votação deles é altíssima”. Nas eleições que levaram o FPO ao poder ,o partido obteve 25,9% dos votos, quase o mesmo que os sociais-democratas (26.8%), uma das maiores votações na extrema-direita em toda a Europa. Um valor maior só na Hungria.
Num longo artigo para a Foreign Policy, o historiador e analista político Franz-Stefan Gady traça as razões, com longas raízes, para a resistência do FPÖ. “O predecessor imediato do FPÖ é a Federação de Independentes (VdU), fundada em 1949, não apenas para representar quase 600 mil ex-membros do partido nazi, ex-prisioneiros de guerra e exilados políticos, como também ex-monárquicos e liberais que queriam a abertura económica da Áustria e reduzir a influência dos sindicatos. Estes grupos nunca se sentiram representados nem pelos populares, nem pelos sociais-democratas - e o VdU tornou-se um dos primeiros agregadores políticos do sentimento antissistema.”
Mas mesmo com bons resultados (12% nas eleições de 1949), os dois grandes partidos não tinham razões para integrar um partido abertamente do lado dos interesses de ex-nazis no governo, já que estavam confortáveis na sua aparentemente perpétua ‘grande coligação’. Um ano depois da independência da Áustria, um ex-oficial das SS, Anton Reinthaller, irritado com a relutância dos partidos em ouvir o VdU, levou o partido para a extrema-direita e deu-lhe o nome que hoje conhecemos, Partido da Liberdade.
No ADN do partido, porém, ainda havia laivos de liberalismo e as lutas internas nunca cessaram verdadeiramente. Mas é também disto que a robustez do FPÖ é feita. “Em primeiro lugar, o FPÖ estabeleceu-se como um partido antissistema desde o início e essas credenciais mantêm-se impecáveis até hoje. E até hoje os seus eleitores definem-se por uma oposição visceral à tal rotatividade de privilégios entre o ÖVP e os sociais-democratas do SPÖ. Os escândalos não afetam muito os seus resultados porque as bases acreditam que estas notícias são produto de uma conspiração dos partidos do governo, os inimigos de sempre, forças que só querem tirar o FPÖ do poder”, escreve ainda Franz-Stefan Gady.
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Em 1986, depois de uma nova dissolução dos ideais mais à direita e um crescente controlo da ala mais neoliberal, o FPÖ reforça de novo o alinhamento à direita com Jörg Haider, que torna o partido num modelo para o populismo moderno sob o slogan “Áustria em Primeiro” e adopta uma retórica anti-imigração e defensora da lei da ordem.
“O que para mim é surpreendente é que, apesar de o FPÖ ter perdido muitos dos seus eleitores ao longo de várias lutas internas, nunca colapsou de facto. Parece que quem vota em partidos nacionalistas tem maior tolerância para este tipo de escândalos”, comenta ainda Kreko, que nota o facto de que também de Itália chegam notícias de que possa haver dinheiro russo nas campanhas de Matteo Salvini, atual ministro do Interior italiano cujo partido, a Liga, acabou de vencer com estrondo as eleições europeias. “Leva-nos a pensar na possibilidade de que também em Itália o efeito destas supostas ligações à Rússia tenha sido reduzido.”
Este ódio ao sistema, o maior capital do FPÖ, deixa Kunz com um complicado dilema em mãos: tem de se aliar aos sociais-democratas porque não pode voltar a confiar na extrema-direita, mas uma nova coligação dos partidos de sempre “levará necessariamente a uma subida do FPÖ, que, como maior partido da oposição, continuará o seu discurso antiprivilégio e anticorrupção, ainda que eles mesmo estejam envolvidos em alegados escândalos”, escreve Gady. O futuro político da extrema-direita austríaca parece, portanto, assegurado.
“Em todas as sondagens feitas na rua aos apoiantes do FPÖ, o que eles dizem é que têm medo dos refugiados, da modificação da sociedade, dos imigrantes que lhes tiram a segurança e os empregos. E se há duas semanas eles eram xenófobos, não é agora por causa de um vídeo com supostas propostas aos russos que eles vão mudar de partido. Eles não votam pela integridade, pela seriedade do partido, por isso não interessa”, diz ainda Bonvalot.
Stephanie Liechtenstein, analista política austríaca, considera que o poder do FPÖ está enraizado na psique: “Penso que as pessoas na Áustria estão mais abertas a mensagens populistas porque têm mais medo de que a sua forma de vida mude. Não querem perder os subsídios sociais para os imigrantes, não querem perder os empregos, não querem que a cultura se dissolva. Os populistas têm sempre esta mensagem e as pessoas tendem a aceitar estes medos como seus”, diz ao Expresso.
O rapaz de 20 anos que prometia “o Mundo de Ontem” a uns e a modernidade a outros
Alfred Polgar, um famoso jornalista austríaco do século XX, disse outrora que o seu povo “olha com antecipação para o passado”. É uma frase aparentemente antitética mas quem ler “Die Welt von Gestern” (o tal “Mundo de Ontem”), a autobiografia de Stefan Zweig, que, como sabemos, não acabou os dias como um homem feliz, entenderá uma parte da psique que comanda algumas das decisões do povo austríaco. Kurz conseguiu o quase impossível: aos 24 anos já era secretário-geral para a Integração pelo ÖVP, depois disso tornou-se o ministro dos Negócios Estrangeiros mais jovem do mundo, com 27. Quando foi fotografado ao lado de John Kerry, em 2016, o secretário de Estado dos Estados Unidos tinha mais 44 anos do que Kurz. Enfrentou muitas críticas pela sua idade e quase sempre respondeu com humildade.
Quando a extrema-direita, que até esta segunda-feira estava com ele no poder, disse que a sua nomeação para o cargo era “a Áustria a dizer adeus à sua voz internacional”, Kurz respondeu: “É verdade que sou muito novo e que a minha experiência diplomática é próxima de zero, mas sou muito diligente e quero mesmo contribuir para a mudança das coisas”. De alguma forma a sua aparência cuidada, a sua elegância, as suas boas maneiras, parecem ter sido suficientes para assegurar aos austríacos que alguma coisa dos “velhos tempos” ele haveria de querer preservar.
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As opiniões sobre Kurz dividem-se. Alguns consideram o jovem portento do conservadorismo europeu um dos poucos que ainda podem salvar o continente do ‘iliberalismo’ à moda de Orbán, dadas as suas credenciais pró-UE e a defesa que continua a fazer das instituições e das economias abertas; outros, pelo contrário, veem nele uma perigosa voz de legitimação do discurso anti-imigração, anti-Islão. Kurz tornou-se uma estrela das alas direitas da política na Europa quando começou em 2015 a manifestar-se contra as políticas de abrigo de refugiados perfilhadas então pela chanceler alemã, Angela Merkel, e é hoje consensual que o fecho da rota dos Balcãs, por onde chegava a maioria dos migrantes que desaguavam na Grécia, só aconteceu porque Kurz tornou a sua crítica à “dissolução da identidade europeia” demasiado popular entre as massas para ser ignorada pelas cúpulas. Certo é que antes de Kurz chegar à liderança do ÖVP, era a extrema-direita que seguia na frente das sondagens e a chancelaria não parecia assim uma aposta tão aventureira.
Kurz nasceu em 1987 num bairro de classe média de Viena onde ainda vive. O pai é engenheiro e mãe professora do ensino secundário. As salas de aula onde cresceu estavam cheias de refugiados da Guerra dos Balcãs e esta experiência informou muitas das decisões que tomou enquanto esteve à frente do Departamento de Integração. Nessa altura, Kurz era um jovem diferente - bom, na verdade não sabemos se era mas as suas opiniões, as que expressava publicamente, eram certamente.
Nesse cargo, Kurz criou formas “rápidas” de aceder à cidadania para os imigrantes “exemplares” -como jovens com boas notas, bons níveis de alemão e que tenham feito voluntariado -, um programa de “embaixadores para a imigração” que pudessem servir de exemplo junto das suas comunidades e, quando o FPÖ pediu que os subsídios para as crianças dos imigrantes fossem menores do que aqueles oferecidos às dos cidadãos austríacos, Kurz manifestou-se contra a ideia. Menos de cinco anos depois, está transformado numa voz anti-imigração que até já sugeriu à UE enviar a FRONTEX para o norte de África para evitar que os migrantes entrem em barcos - ponto final. As mulheres muçulmanas já não podem andar cobertas em locais públicos, o orçamento para a integração encolheu bastante e os telefones são confiscados aos requerentes de asilo como forma de “ajudar as autoridades a garantir a identidade” das pessoas.
“É difícil entender porquê, eu não estudei a psique dele a fundo, mas o que é certo é que ele levou o seu partido para a direita e a maioria dos eleitores, nas sondagens de opinião, mostram-se ‘satisfeitos’ ou ‘extremamente satisfeitos’ com a sua liderança”, diz Bonvalot. E é por isso que o jornalista e escritor diz não ter dúvidas de que uma coligação com o FPÖ é uma solução que continua “totalmente em cima da mesa” para próxima eleição geral, em setembro. “Não me parece que Kurz tenha um problema em coligar-se de novo com a extrema-direita, não perderam votos, ganharam as europeias, as pessoas não parecem zangadas com ele nem com o seu partido. No máximo retiram das mãos do FPÖ o Ministério do Interior e as Secretas, para evitar que eles possam ter a tentação de partilhar segredos com os russos”, analisa. Lichenstein discorda: “Diria que o FPÖ vai ter uma boa votação em setembro mas o ÖVP ainda ficará à frente. Acho muito complicado ver o ÖVP em coligação de novo com o FPÖ, devido aos escândalos. É mais provável uma coligação com os sociais-democratas ou mesmo com os liberais (NEOS) ou com os verdes, dependendo de quantos votos conseguirem.