Jejuar e protestar, dois verbos que argelinos e sudaneses conjugam no Ramadão
Agentes da polícia tentam conter manifestantes em Argel, capital da Argélia
FOTO RAMZI BOUDINA/REUTERS
Em poucos dias, caíram os Presidentes da Argélia e do Sudão mas os manifestantes de ambos os países exigem mais mudanças. Apesar do calor, “os protestos não parecem estar a esmorecer e continuamos determinados”, diz ao Expresso uma ativista argelina. “O que tentamos fazer é manter o protesto, disponibilizando o ‘suhur’”, conta um sudanês
O mundo muçulmano observa o Ramadão desde o último domingo, o que significa que durante um mês, do nascer ao pôr do sol, cerca de um quarto da população mundial se abstém de comer, beber e fumar, entre outros prazeres ou necessidades. Mas o que acontece em países como a Argélia e o Sudão, ambos maioritariamente islâmicos, que, por força dos protestos de rua, depuseram os respetivos Presidentes? Nos dois casos, os manifestantes continuam a reivindicar mudanças no que – não sem gerar aceso debate – muitos apelidam de reedição das Primaveras Árabes do início da década.
“Os protestos não parecem estar a esmorecer. Continuamos determinados e mais do que prontos para corrermos com eles – quanto mais cedo melhor”, comenta ao Expresso a argelina Sara Benmahmoud. “Eles” são a classe dirigente que nas últimas duas décadas acompanhou Abdelaziz Bouteflika. A 2 de abril, pressionado inicialmente pelos protestos populares e depois pela própria hierarquia militar, Bouteflika anunciou a sua demissão da presidência da Argélia.
Desde então, os manifestantes exigem a saída do triunvirato que designam por “3B”, numa referência à primeira letra dos respetivos apelidos: o primeiro-ministro, Noureddine Bedoui, o ministro do Interior, Tayeb Belaiz (designado por Bouteflika chefe do Conselho Constitucional, órgão que regula o processo eleitoral), e o Presidente interino, Abdelkader Bensalah. Enquanto servidores leais ao Presidente demissionário, os três devem seguir o seu exemplo e demitir-se, defendem os manifestantes.
“Protestar em jejum debaixo deste calor é muito difícil”
Sara vive em Sétif, uma cidade a cerca de 300 quilómetros da capital, Argel. Ainda esta quarta-feira, no 74.º aniversário do massacre de Sétif e Guelma [cidade do nordeste do país], “o ‘wali’ apareceu e as pessoas expulsaram-no, dizendo que não o queriam ali”, conta. O ‘wali’ é uma figura política local, cujo poder está algures entre o de um presidente de Câmara e o de um governador, como explica a ativista. Os argelinos lembravam a série de ataques sobre civis, levada a cabo pelas então autoridades coloniais francesas, a 8 de maio de 1945.
“Protestar em jejum debaixo deste calor é muito difícil”, concede Sara. “Mas estamos a adaptar-nos rapidamente. Somos um povo muito, muito teimoso quando pomos alguma coisa na cabeça”, sublinha. Na véspera, terça-feira, o dia em que os estudantes normalmente se manifestam, a adesão não foi tão grande como costuma ser, pelo menos em Sétif, relata ainda. O jejum e o calor intenso poderão ajudar a explicar a afluência mais fraca. Contudo, “a razão principal foi que a universidade ameaçou expulsar os estudantes que não fossem às aulas”, diz.
Sara lamenta não ser tão expedita na resposta às perguntas do Expresso como desejaria, justificando-se com o trabalho, a preparação do ‘iftar’ (uma das duas refeições permitidas durante o Ramadão, consumida depois de o sol se pôr) e as orações, que só terminam às 22h30. Durante este mês, os muçulmanos também comem antes da alvorada, no chamado ‘suhur’, um evento que é muito mais do que uma refeição – aliás, tanto o ‘iftar’ como o ‘suhur’ são momentos de confraternização com familiares e amigos.
OZAN KOSE/AFP/Getty Images
“Um pequeno preço a pagar por aqueles que morreram por este país”
Poucos dias depois de Bouteflika ter sido apeado, caía Omar al-Bashir no Sudão, ao fim de quase três décadas como Presidente e após quatro meses de protesto. O conselho militar de transição, que assumiu o poder a 11 de abril, prometeu realizar eleições no prazo de dois anos mas os manifestantes rejeitaram a proposta, permanecendo nas ruas da capital, Cartum, e exigindo um Governo civil de imediato.
Os protestos começaram em dezembro do ano passado, inicialmente por causa do preço do pão, que havia triplicado, mas rapidamente passaram a exigir a demissão de Bashir. A partir de 6 de abril, os manifestantes concentraram-se dia e noite à frente do quartel-general do Exército, na capital, e o Presidente seria deposto e detido cinco dias depois.
Nazim Siraj tem 39 anos, trabalha numa organização sem fins lucrativos de resposta a catástrofes e vive em Cartum, apesar de ser natural do norte do Sudão. Em declarações ao Expresso, diz que protesta contra o Governo, “a causa principal da crise que o país atravessa”, mas também contra “a injustiça relativamente às pessoas desfavorecidas” e “a violência injustificada para conter os protestos”.
Como no caso argelino, as temperaturas elevadas são o grande inimigo dos manifestantes sudaneses mas, como conta Nazim, trata-se de “um pequeno preço a pagar por aqueles que morreram por este país e ficaram feridos”. “O que tentamos fazer é manter o protesto, disponibilizando o ‘suhur’”, refere.
“O mês sagrado do Ramadão é puro e cheio de bondade. Não deteriora de todo a nossa vontade, bem pelo contrário”, sublinha Sara. “Conseguimos reunir ainda mais força, como verão esta sexta-feira [outro dia de protesto por excelência na Argélia]”, remata.