“Mestre das mulheres obedientes”: a história de um culto sexual que as marcava como o gado e as chantageava
As instalações da empresa em Albany, no estado de Nova Iorque
Amy Luke/ Getty Images
“Nxivm”: empresa norte-americana com programas de auto-ajuda. “DOS”: culto sexual dentro da empresa. “Vanguard”: líder, Keith Raniere. “Collateral”: fotografias de mulheres nuas, material de chantagem. “Ritual”: queimar com um ferro na pele as iniciais KR. Todos estes são vocábulos do Dominus Obsequious Sororium, em português, “Mestre das Mulheres Obedientes”, uma seita envolvida num caso de tráfico sexual. Esta terça-feira, ex-membros vão quebrar o voto de silêncio
Cinco mulheres entre os 30 e 40 anos deitaram-se em cinco marquesas de massagem. Estavam nuas. Sarah Edmondson era uma delas. Sabia que lhe iam fazer uma pequena tatuagem. Era o ritual de iniciação, explicaram-lhe, e ela aceitou sem questionar. A ela - e às restantes - agarram-na com força nos ombros e nas pernas, impediram-na de se mexer. Obrigaram-na a dizer: “Mestre, por favor marca-me, é uma honra.” E uma médica marcou-a como quem assinala o gado. Com um ferro a escaldar gravaram junto à anca de Sarah as letras “KR”, iniciais de Keith Raniere, o líder daquele grupo que tinha um propósito bem diferente daquele que ela julgava ter.
“Inicialmente não era suposto a marca ter as minhas iniciais, mas elas mudaram isso para ser uma espécie de homenagem (...) se fossem as iniciais de Abraham Lincoln ou de Bill Gates ninguém se preocupava”, escreveu Raniere numa mensagem a que o “New York Times” teve acesso. Sob chantagem, as mulheres viriam a ser forçadas a manter relações sexuais com o líder.
O ritual demorou entre 20 e 30 minutos. Os gritos de dor abafados e o cheiro a queimado demoraram horas a desaparecer. O relato de Sarah foi publicado pelo jornal “The New York Times”, que conseguiu recolher denúncias de cinco mulheres, ex-membros do culto Dominus Obsequious Sororium, traduzido para português como “Mestre das Mulheres Obedientes” e conhecido como DOS (acrónimo da designação em latim). Para esta terça-feira está marcada uma audiência em que antigos membros vão quebrar o silêncio e testemunhar contra o líder Keith Raniere.
Mas vamos por partes: Raniere criou com Nancy Salzman a Nxivm, uma empresa focada em programas de desenvolvimento pessoal e que oferecia aquilo a que chamavam “Executive Success Programs”, nada mais que programas de auto-ajuda. “Uma comunidade guiada pelos princípios humanitários que procura dar poder às pessoas e responder a perguntas importantes sobre o que significa ser humano”, lê-se na descrição do site.
Embora ao longo de 20 anos de existência tenham surgido algumas polémicas e a empresa ter sido associada a cultos, apenas no ano passado surgiram as notícias desta irmandade secreta com algumas mulheres pertencentes à Nxivm. Sarah Edmondson foi uma das que denunciou, mostrando a marca que tem cicatrizada no corpo.
Raniere está agora a ser julgado, é acusado de escravatura, tráfico humano e sexual, conspiração e fraude bancária. Já durante a investigação, uma nova acusação surgiu: pornografia. As autoridades acreditam que a primeira escrava sexual do líder foi uma jovem de 15 anos.
A casa de Keith Raniere, o líder, em Halfmoon, Nova Iorque
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“Collateral”
A cerimónia de iniciação de Sarah aconteceu em março de 2016. Disseram-lhe que aquela era uma espécie de sociedade secreta que “daria às mulheres ferramentas para serem poderosas, para recuperarem o seu poder em prol da construção do amor”, um grupo criado como uma força do bem, que pretendia crescer e tornar-se influente junto da opinião pública e, consequentemente, nas eleições. Era isto que Raniere lhes contava. Mas para entrar era preciso ultrapassar as “fraquezas”.
Uma das figuras mais importantes da empresa - e filha da fundadora -, Lauren Salzman, era a mestre de Sarah. Foi ela que deu ordem para a marcar, mas também foi ela que atraiu Sarah para a seita. “A Lauren era alguém que admirava, era uma superestrela dentro da Nxivm.” E foi através dela que chegou ao DOS. “É estranho e totalmente secreto aquilo que te vou dizer mas preciso que me dês algo que seja o teu ‘collateral’ para garantir que não contas nada disto”, lembra-se Sarah de ouvir de Lauren por altura do ritual de iniciação.
Depois de marcadas, as mulheres eram forçadas a entregarem fotografias suas nuas ou em situações embaraçosas e vulneráveis. Chamavam a esses documentos “collateral” e seriam usados mais tarde para as chantagear: para as obrigar a ter relações sexuais com Raniere, para as impedir de denunciarem a seita e para as manter ali.
As mulheres organizavam-se por vários núcleos, cada um com uma mestre e seis escravas. Com o tempo, essas escravas passariam a mestres e teriam as suas submissas e assim sucessivamente. A relação baseava-se na obediência e na hierarquia. Todas elas submissas a Raniere. “A Lauren fez tudo aquilo parecer um campo de férias de bad-ass bitch”, contou Sarah.
Ainda durante o período inicial, as escravas tinham uma série de rituais. Por exemplo de manhã, sempre, enviavam uma mensagem à mestre a desejar-lhe um bom dia; ao final do dia, sempre, outra mensagem de boas noites. Independentemente da hora, podiam receber uma mensagem apenas com um ponto de interrogação. As escravas tinham 60 segundos para responder de volta: “pronta”. E, claro, havia sempre consequências para quem falhasse. Por vezes, jejuavam, noutras, tinham castigos físicos.
A atriz Allison Mack, conhecida pelo seu papel na série televisiva “Smallville”, acusada de tráfico sexual pela sua alegada ligação à seita
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Uma vez criada a relação, as mulheres eram obrigadas a fazer de tudo. Em tribunal, no final do ano passado, Lauren Salzman, admitiu que manteve uma mulher - cuja identidade não é conhecida - em cativeiro durante dois anos (2010-2012). Ameaçou mandá-la para o México caso “não fizesse os trabalhos que eu e outros lhe ordenávamos”.
Lauren e a mãe, Nancy Salzman, já admitiram a culpa dos seus crimes.
“Vanguard”
Keith Raniere, 58 anos. Conhecido como “Vanguard”, fundador da Nxivm e mestre da DOS. “Cientista, matemático, filósofo, empreendedor, educador, inventor e autor”, assim se descrevia no material publicitário da Nxivm. A revista “Time” estima que mais de 16 mil pessoas tenham participado nos seus cursos de auto-ajuda.
Quando em 2017 surgiram as acusações e as primeiras notícias do culto secreto, fugiu para o México - onde além de EUA e Canadá, a Nxivm tinha escritórios. Na sequência das queixas apresentadas pelas vítimas, as autoridades norte-americanas emitiram uma ordem de detenção. E, em março do ano passado, foi detido pelas autoridades mexicanas, deportado e detido.
Além de obrigar as mulheres a manterem relações sexuais com ele - e só com ele -, o “Vanguard” controlava o que comiam. Muitas quase passavam fome com o objetivo de terem um corpo próximo daquele que o líder considerava ser o ideal de beleza. É acusado de manipulação e lavagem cerebral por muitos antigos membros da Nxivm.
Não assumiu a culpa de qualquer crime. “Keith nunca ameaçou ninguém com o que fosse”, disse o advogado de defesa à NBC. Está detido numa prisão de Brooklyn. No entanto, ao contrário de Raniere, nos últimos meses, cinco mulheres - o seu núcleo próximas e as primeiras mestres - assumiram a culpa de uma série de crimes.
Além de Lauren e Nancy Salzman, também Kathy Russell, Clare Bronfman e Allison Mack declararam-se culpadas perante a Justiça. Esta última é um dos nomes mais mediáticos envolvido no processo por ter sido uma das protagonistas da série “Smallville” ao longo de dez temporadas (interpretou a personagem Chloe Sullivan). Responde pelos crimes de tráfico sexual e por conspirar para obrigar pessoas a trabalhos forçados.
“Cheguei à conclusão que tenho de assumir a responsabilidade pelos meus atos e por isso assumo a culpa. Lamento muito o que aconteceu às vítimas deste caso. Peço desculpa a quem magoei por me ter deixado levar pelos ensinamentos de Keith Raniere”, disse a atriz de 35 anos. Segundo a acusação, Mack mandou, direta ou indiretamente, que as suas escravas tivessem relações sexuais com Raniere.
Esta terça-feira são esperados os depoimentos de alguns antigos membros do grupo. Pessoas muito próximas de Raniere, possivelmente, Allison Mack e Lauren Salzman podem testemunhar.