Líbia. “É uma ingenuidade pensar que o Governo francês controla Haftar”
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Quem o diz é um analista de defesa, desafiado pelo Expresso a comentar as acusações de “falta de solidariedade” de Paris, feitas pelo primeiro-ministro líbio. “A nossa posição não é ambígua”, garante o Quai d'Orsay, mas, segundo a imprensa, o chefe da diplomacia francesa mantém relações próximas com o general renegado que lidera a ofensiva contra Trípoli
“Como pode a França, que aspira à liberdade, aos direitos humanos e à democracia, ser tão pouco clara em relação ao nosso povo, que aspira aos mesmos valores?”, interroga-se o primeiro-ministro da Líbia, Fayez al-Sarraj, numa entrevista publicada esta segunda-feira pelo jornal “Le Monde”. O chefe do Executivo afirmou-se “surpreendido e perplexo” com a posição de Paris relativamente a Khalifa Haftar, o general renegado que, a 4 de abril, lançou uma ofensiva para tomar a capital líbia, Trípoli. Sarraj queixou-se mesmo de “falta de solidariedade”.
As autoridades francesas rejeitam as acusações de apoio à ofensiva do líder do autoproclamado Exército Nacional da Líbia. As acusações motivaram, de resto, a presença de ‘coletes amarelos’, no último fim de semana, em Trípoli, em protesto contra o alegado apoio francês. Paris desmente e promete apoiar os esforços internacionais para se chegar a um acordo político na Líbia.
“A posição francesa não é ambígua”, garante o Ministério das Relações Exteriores. O próprio chefe da diplomacia, Jean-Yves Le Drian, deslocou-se na semana passada a Itália, país que no passado criticou a conduta de Paris, para anunciar iniciativas conjuntas na Líbia com o seu homólogo italiano. No entanto, a rádio France Inter lembra que o governante mantém excelentes relações com Haftar, um antigo oficial que serviu Muammar Kaddafi antes de se exilar e voltar mais tarde como senhor da guerra no leste líbio.
A Líbia, em turbulência desde a deposição e morte de Kaddafi em 2011, tem pelo menos duas administrações rivais: um Governo internacionalmente reconhecido, estabelecido na capital e chefiado por Sarraj, e um outro na cidade oriental de Tobruque, alinhado com Haftar.
“Nos últimos tempos, tem havido muita propaganda antifrancesa”
O analista de defesa e segurança Arnaud Delalande rejeita igualmente as acusações feitas à diplomacia francesa. “Desde os ataques de 2015 em Paris, a França fez do combate ao terrorismo a sua prioridade e não esperou pelo Presidente, Emmanuel Macron, para dar apoio a Haftar. Mas o Governo francês não controla Haftar – é uma ingenuidade pensar isso – e nada podia fazer para impedir a ofensiva”, sublinha ao Expresso, a partir da cidade francesa de Tours.
“Nos últimos tempos, tem havido muita propaganda antifrancesa, especialmente por causa da alegada presença de forças especiais francesas em Gariam [cidade do noroeste da Líbia]”, avalia Arnaud Delalande. “Isto foi amplificado pelos comentários do Governo tunisino sobre diplomatas franceses e europeus bloqueados em Ras Ejder [junto à fronteira com a Tunísia] ou que tentaram chegar a Djerba [ilha tunisina] de barco. Estes diplomatas eram, na realidade, membros da força especial de intervenção francesa GIGN, que integravam a equipa de segurança do embaixador francês na Líbia, e elementos da EUBAM [a missão da União Europeia de assistência fronteiriça na Líbia]”, esclarece.
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“Esta informação foi-me confirmada pelas autoridades francesas e pela EUBAM. Não eram funcionários dos serviços de informação nem forças especiais. As tropas francesas não combatem na Líbia”, insiste o analista de defesa e segurança.
Pelo menos 264 mortos desde o início da ofensiva, diz OMS
A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, esta terça-feira, que pelo menos 264 pessoas morreram e 1266 ficaram feridas desde o início da ofensiva. A OMS repetiu o apelo para uma “cessação temporária das hostilidades” entre os dois campos, instando-os a “respeitar o direito internacional humanitário”. Os combates provocaram 35 mil deslocados e “o movimento continua a um ritmo crescente a cada dia”, alertara na véspera a representante adjunta da ONU na Líbia, Maria do Valle Ribeiro.
A comunidade internacional continua dividida quanto ao melhor destino para a Líbia. Uma coligação, que reúne o Egito, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, vê Haftar como uma possível fonte de estabilidade após anos de guerra civil.
No entanto, o enviado especial das Nações Unidas à Líbia, Ghassan Salamé, rejeita a explicação do general para as suas ações. “É claramente uma tentativa para controlar a capital do país, onde pelo menos um terço da população vive. Isso tornou-se ainda mais evidente pelo facto de ele [Haftar] ter emitido um mandado de prisão contra o primeiro-ministro e outros, o que se assemelha mais a um golpe do que a contraterrorismo”, disse Salamé à BBC Radio 4 em meados deste mês.