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Líbia. “A guerra civil já começou. Já não se batem pelos seus ideais mas pela sobrevivência”

Líbia. “A guerra civil já começou. Já não se batem pelos seus ideais mas pela sobrevivência”
Stringer/picture alliance/Getty Images

A ONU responsabiliza as forças leais a Khalifa Haftar, o comandante que está a tentar tomar a capital do país, pelo ataque aéreo que obrigou a encerrar o único aeroporto em funcionamento em Trípoli. Os voos no Aeroporto Internacional de Mitiga foram suspensos e os passageiros transferidos. O ataque violou a lei humanitária, diz enviado das Nações Unidas

Líbia. “A guerra civil já começou. Já não se batem pelos seus ideais mas pela sobrevivência”

Hélder Gomes

Jornalista

A Organização das Nações Unidas (ONU) condenou o ataque aéreo desta segunda-feira que obrigou ao encerramento do único aeroporto em funcionamento na capital da Líbia, Trípoli. Os voos no Aeroporto Internacional de Mitiga foram suspensos e os passageiros transferidos. Não houve registo de vítimas.

A ONU responsabiliza as forças leais ao general Khalifa Haftar, o comandante do autoproclamado Exército Nacional da Líbia (ENL) que está a tentar tomar a capital. Um porta-voz das forças de Haftar disse que não foram atingidos aviões civis, noticia a agência Reuters.

Na semana passada, Haftar ordenou às suas forças militares de leste que avançassem sobre Trípoli. Haftar, que comanda as tropas a partir da sua base em Bengazi, tem o apoio do Egito e dos Emirados Árabes Unidos. O primeiro-ministro, Fayez al-Sarraj, que pertence ao Governo de Acordo Nacional (GAN), reconhecido internacionalmente, acusa Haftar de tentar liderar um golpe.

Quase três mil pessoas em fuga, alerta ONU

Até ao momento, pelo menos 2800 pessoas fugiram dos confrontos em torno de Trípoli, dizem as Nações Unidas, que também chamam a atenção para os civis que correm o risco de serem privados de serviços vitais.

O enviado especial da ONU à Líbia, Ghassan Salamé, referiu que o ataque aéreo violou a lei humanitária que proíbe ataques contra infraestruturas civis. Salamé sublinhou que o bombardeamento marcou uma “escalada de violência no terreno”. Citado pela Reuters, o porta-voz do ENL, Ahmed al-Mismari, esclareceu que “apenas foi atingida uma aeronave MiG estacionada no aeroporto de Mitiga”.

A Líbia, em turbulência desde a deposição e morte do coronel Muammar Kaddafi em 2011, tem pelo menos duas administrações rivais: um Governo reconhecido internacionalmente, estabelecido em Trípoli e chefiado por al-Sarraj, e um outro na cidade oriental de Tobruque, alinhado com o general renegado Haftar.

“A situação é muito inquietante”

“A situação atual na Líbia é catastrófica. A população do país está de tal modo repartida que, na maioria das cidades, há apenas duas ou três etnias. E nalgumas cidades há só um grupo étnico”, descreve Oumar Aboubakar, nascido em Bengazi e a viver atualmente no Chade, país vizinho do sul da Líbia. “Com a revolução, todas estas cidades se armaram e organizaram em milícias de clãs, o que torna a situação líbia ainda mais séria. Estes grupos tentam controlar as riquezas das suas regiões, o que cria rivalidades entre eles”, acrescenta ao Expresso este licenciado em gestão de recursos humanos.

“As milícias tentam colocar-se sob a bandeira de Bengazi, de Trípoli e/ou de Tobruque para terem ‘legitimidade’ e armamento, a fim de subjugarem os seus inimigos. A situação é muito inquietante”, resume Aboubakar.

O agravamento das tensões acontece numa altura em que a ONU se prepara para realizar uma conferência, entre o próximo domingo e terça-feira, na cidade de Gadamés, para discutir uma solução política e preparar o país para umas eleições há muito adiadas. A conferência poderá agora estar em risco.

“A guerra civil já começou mas é segmentada”

No último domingo, o Comando dos Estados Unidos para África (AFRICOM) anunciou a retirada de um pequeno contingente que fora mobilizado para a Líbia para ajudar em ataques aéreos contra forças leais ao Daesh. O gesto foi seguido por forças indianas de manutenção de paz, pela multinacional italiana de petróleo e gás ENI e pela própria ONU, que comunicou a desmobilização de todo o seu pessoal não essencial.

Quanto à iminência de uma guerra civil, Oumar Aboubakar lembra que “já houve guerras civis – mais do que uma vez na bacia de Cufra e em Seba”. “A mais sangrenta foi na cidade de Tuarga, onde toda a população foi dizimada só porque alegadamente era pró-Kaddafi. A guerra civil já começou mas é segmentada. A maioria das cidades líbias viveu uma guerra civil desde a deposição do regime de Kaddafi. Já não se batem pelos seus ideais mas pela sobrevivência”, sublinha.

“No meio do caos líbios, há os não-árabes que são os danos colaterais e que se confrontam com um problema de (falta de) pertença ao território. A sua nacionalidade é contestada num país que, durante 48 anos e sob Kaddafi, foi considerado árabe. Por isso, procuram alianças por aqui e por ali apenas para serem reconhecidos”, lembra. “Nem o GAN nem o autoproclamado ENL têm um exército nacional. O primeiro-ministro deve a segurança da sua capital às milícias e a Misurata [cidade do noroeste líbio]. O marechal Haftar está a colocar milhares de mercenários sudaneses e chadianos nas suas fileiras para ganhar poder, o que o torna muito impopular no país. A sua última guerra no sul terminou com ajustes de contas e civis massacrados ou feitos reféns”, recorda Aboubakar ao Expresso.

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