Bolsonaro foi à CIA antes de ir ver Trump

Visita de Bolsonaro aos EUA rompe com a tradição brasileira
Visita de Bolsonaro aos EUA rompe com a tradição brasileira
Jornalista
Faltam menos de 24 horas para o primeiro encontro entre o presidente do Brasil e o seu homólogo dos Estados Unidos. Cerca de 20 minutos a sós com Donald Trump, seguidos de almoço esta terça-feira serão o ponto alto desta visita de dois dias de Jair Bolsonaro a Washington.
O “Trump tropical” vai enfim conhecer o Presidente que mais admira, imita e elogia, durante uma visita de dois dias em que quer reforçar os laços entre o Brasil e os Estados Unidos. Uma admiração por Trump que levou Bolsonaro a romper com a tradição e a não se estrear com uma viagem à Argentina, como tem sido a tradição dos seus antecessores no Palácio do Planalto. Será que esse enlevo pelo Presidente dos EUA vai levar Bolsonaro a fazer continência a Trump - tal como fez ao assessor da Casa Branca em novembro - é uma pergunta que muitos analistas e cidadãos comuns estão neste momento a colocar.
Jair Bolsonaro vai discutir o acordo de utilização pelos EUA da base militar de Alcântara para lançamento de foguetões e uma quota de importação de trigo norte-americano de 750 mil toneladas anuais sem a aplicação de direitos, por exemplo. A principal pretensão brasileira é bem conhecida: apoio de Washington à entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o fórum internacional que reúne os 36 países mais ricos do mundo.
Se a questão da Venezuela assume particular interesse de discussão para Washington, as discussões com Bolsonaro devem versar também obrigatoriamente quer os principais “inimigos” de Washington na região, como Cuba e Nicarágua, quer China e Irão a nível global. Temas que vão ser abordados esta segunda-feira na reunião entre o conselheiro de segurança norte-americano John Bolton - o mesmo a quem Bolsonaro fez continência numa reunião em novembro - e o general Augusto Heleno, ministro-chefe do gabinete de segurança institucional do Governo Bolsonaro. “Na prática, os Estados Unidos querem o compromisso do Brasil em ações efetivas contra Venezuela, Nicarágua e Cuba. O conselheiro de Segurança da Casa Branca classifica o trio como a 'troika da tirania' na América Latina”, lê-se na edição desta segunda-feira do Globo. Uma reunião em que será discutido também um eventual apoio de Brasília a Washington na guerra comercial com Pequim.
Fora da agenda oficial esteve a visita na manhã desta segunda-feira à sede da CIA em Washington. A visita de Bolsonaro e alguns ministros à sede da secreta norte-americana foi revelada por Eduardo Bolsonaro via Twitter. Deputado pelo Rio de Janeiro, Eduardo é o terceiro filho do Presidente, integra a comitiva presidencial e tem agido como “chanceler informal” do Brasil.
Além de Eduardo Bolsonaro e de Augusto Heleno, o Presidente brasileiro é acompanhado na visita aos EUA dos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública), Tereza Cristina (Agricultura) e Ricardo Salles (Meio Ambiente).
Pelas 15h30 locais, mais três horas em Portugal Continental, o Presidente brasileiro deve encontrar-se com o ex-secretário do Tesouro norte-americano Henry “Hank” Paulson. Em seguida, Bolsonaro participa num cerimónia em que são assinados diversos acordos multilaterais.
De acordo com a imprensa brasileira, o acordo de salvaguardas tecnológicas entre Brasil e Estados Unidos assume particular relevância. Segundo a Agência Brasil, este acordo permite o uso comercial da Base de Lançamentos Aeroespaciais de Alcântara, localizada no estado brasileiro do Maranhão. Estima-se que haja 42 lançamentos comerciais de satélites por ano.
Segundo a Agência Brasil, a Base de Alcântara é reconhecida internacionalmente como ponto estratégico para o lançamento de foguetes por estar localizada em latitude privilegiada na zona equatorial, o que permite o uso máximo da rotação da Terra para impulsionar os lançamentos. Para a Agência Espacial Brasileira (AEB), o uso da base de Alcântara pode significar uma redução de 30% na utilização de combustível em comparação a outros locais de lançamentos em latitudes mais elevadas.
Com pouco mais de três meses, a política externa de Bolsonaro e do seu clã familiar constrasta com a linha pragmática seguida nos últimos 25 anos quer por governos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) quer pelo próprio Partido dos Trabalhadores (PT). Ainda sem ministro das Relações Exteriores nomeado, foi o Eduardo Bolsonaro, quem confirmou no final de novmebro a mudança da embaixada do Brasil de Telavive para Jerusalém. De boné na cabeça com o slogan de Trump, Eduardo irritou não só o mundo árabe, mas também os próprio generais brasileiros que apoiam e levaram o seu pai à presidência. O vice-presidente, Hamilton Mourão, desmentiu Eduardo, mas, como aviso, a Arábia Saudita – um dos principais importadores de carne brasileira – não deixou de impôr condições mais duras a uma dezena de grandes exportadores de carne brasileiros. Pelo meio, várias declarações do presidente contra a China, arrefeceram de algum modo as relações com o principal parceiro de comércio externo. Uma atitude de alinhamento com Washington que também se refletiu negativamente em fóruns de cooperação internacionais como o Mercosul – o mercado comum da América Latina – e até nos BRICS, o “clube” de eceonomias emergentes que reúne o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Já em fevereiro, foi novamente o vice-presidente brasileiro que de algum modo travou o “aventureirismo” de Bolsonaro em relação ao apoio a uma intervenção militar dos Estados Unidos na vizinha Venezuela.
“As relações entre os dois maiores países do continente americano sempre foram e sempre serão complexas. Impossível reduzi-las a uma única dimensão. Nem a competição desenfreada e hostil, nem o alinhamento subserviente”, defende Celso Amorim, diplomata e antigo ministro das Relações Exteriores dos governo de Itamar Franco e de Lula da Silva em artigo publicado no Carta Capital.
“O ditador Ernesto Geisel percebeu que pouco teríamos a ganhar com o alinhamento automático a Washington. Mais recentemente, Lula conseguiu manter um amplo diálogo com George W. Bush e Barack Obama, que se estendeu para muito além dos assuntos regionais”, acrescentou.
O diplomata salienta a perda de importância do Brasil para os EUA, atestada até pelo breve encontro que Bolsonaro e Trump deverão ter amanhã. Uma reunião que contrasta, por exemplo, com as “ longas conversas de Lula com Bush em Camp David e na Granja do Torto”, numa altura em que os dois presidentes divergiam em quase tudo, desde os subsídios agrícolas no comércio internacional à Guerra do Iraque.
Celso Amorim destaca que Trump não desistiu de uma intervenção musculada na Venezuela e quer que o Brasil o apoie, depois da crise da ajuda humanitária de 23 de fevereiro. “Além do pré-sal, da Embraer, do programa do submarino nuclear, dos caças, o que mais poderá ser colocado pelo presidente Trump como condição para uma aproximação com o Brasil, desde logo marcada pelo paternalismo e a condescendência?, interroga Celso Amorim.
Porém, o “namoro incondicional” de Bolsonaro a Trump poderá de algum modo ser travado pela própria dinâmica dos grupos que apoiam o presidente brasileiro, sustentam vários analistas brasileiros. A atestá-lo está os “desmentidos” do vice-presidente Mourão, por exemplo. Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas lembra que entre os apoiantes de Bolsonaro existe “o grupo antiglobalização, que controla o mundo das redes sociais e dos média: propõe muito, mas faz pouco. Também temos os militares, que não criam muitas iniciativas, mas vetam. E existe ainda o grupo econômico”. Em artigo publicado na edição brasileira do El Pais, Stuenkel salienta que “as diferenças entre eles são tão grandes que podem gerar desconfiança” nos interlocutores porque “não se sabe quem vai ganhar as batalhas internas.”
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