Enquanto os deputados iam aparecendo no ecrã da Sky News para comentar à vez mais uma derrota de Theresa May, um cronómetro no canto superior esquerdo mostrava a contagem decrescente até ao dia marcado para a saída do Reino Unido da União Europeia. É um relógio que marca o tempo até à casa dos segundos, para que toda a gente tenha a noção visual do tempo a passar. Está sempre no mesmo sítio, não muda quando muda o tema da emissão.
Faltam apenas 17 dias para a saída do Reino Unido da UE (marcada para 29 de março às 23h) e esta terça-feira os deputados ignoraram os pedidos da primeira-ministra britânica para que o seu segundo acordo fosse aprovado. Depois de o Partido Democrático Unionista (DUP), que garante a parca maioria ao Executivo, ter dito que não poderia apoiar o documento, ficou claro que muitos conservadores, 75 deles (numa bancada com 314), não se reviam nesta segunda versão do acordo de May.
Esta quarta-feira há nova votação e também é determinante. Theresa May não vai impor disciplina de voto aos deputados conservadores no debate que irá determinar se o Parlamento do Reino Unido rejeita ou aceita a possibilidade de o Brexit acontecer sem qualquer acordo.
Se a moção for aprovada — isto é, se os deputados rejeitarem a possibilidade de um ‘no deal’ —, o Governo fica proibido pelos deputados de sair da UE sem estarem asseguradas coisas como a continuidade de um mercado sem tarifas alfandegárias entre todos os países do bloco. Sucede, porém, que a saída a 29 de março (com ou sem acordo) está consegrada na lei britânica e comunitária. Evitar de todo o ‘no deal’ só é possível se houver acordo aprovado, adiamento (que depende da autorização dos 27) ou revogação do processo de saída (esta pode ser unilateral).
Adiamento? Só se for justificado, diz a UE
Do outro lado da mesa de negociações está a UE, que pode ou não compadecer-se por os deputados rejeitarem (previsivelmente, quarta-feira) uma saída sem acordo e aceitar ou não o cenário mais próximo: um prolongamento do prazo de saída. Um eventual pedido britânico, a ser debatido quinta-feira se o Parlamento rejeitar a saída sem acordo, só será aprovado se houver unanimidade entre os 27. E Bruxelas indicou, na reação à derrota do acordo de May, que só aceitaria esse cenário com justificação credível e um plano viável.
Só que também este capítulo é um problema: ninguém sabe por quanto tempo se poderia estender esse adiamento. As eleições europeias realizam-se em maio e muitos deputados britânicos já se manifestaram contra o surrealismo que seria realizá-las num país que votou para que o Parlamento Europeu deixasse de ter qualquer poder no que se passa no Reino Unido. Mas se o adiamento do Brexit for para lá de 2 de julho, dia em que está previsto os eurodeputados tomarem posse, então terá mesmo de haver representantes britânicos em Estrasburgo, sob pena de o Parlamento Europeu não ficar legitimamente constituído ao abrigo do direito europeu.
A UE só está disposta ao adiamento mediante garantias de que o Reino Unido resolva a situação, seja através da realização de um segundo referendo ou da total rutura política que eleições antecipadas viriam provocar. Esta última opção traz a possibilidade de surgir em vez de May (primeira-ministra que defende um acordo com a UE mas prefere honrar a escolha dos britânicos e retirar o Reino Unido da UE com ou sem acordo) um trabalhista que coloque em causa todo o Brexit. Boas notícias para uns, total traição das escolhas do eleitorado para outros.
May sem voz e (quase) sem poder
Logo após a derrota por 391 votos contra e 242 a favor, a primeira-ministra, com claras dificuldades em fazer-se ouvir dado o seu estado quase afónico, fez uma declaração dizendo-se “profundamente desapontada” com o facto de o seu acordo ter sido rejeitado de novo. May indicou que votará contra a hipótese de um Brexit sem rede, mas dando liberdade de voto à bancada conservadora
“Pessoalmente deparei-me com dificuldades em escolher um ou outro caminho, como decerto muitos outros deputados. Quero apaixonadamente honrar o resultado do referendo, mas também acredito apaixonadamente que a melhor forma de o fazer é sair de forma ordenada, com um acordo. Ainda acredito que seja possível chegar a uma maioria nesta Câmara a favor dessa via”, afirmou ao reagir à derrota.
Invocou ainda os seus “deveres enquanto primeira-ministra do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte” e referiu os potenciais danos para a unidade territorial do Reino Unido que resultariam de uma saída sem acordo, “num momento em que uma parte do país está sem governo regional”. Essa parte é a Irlanda do Norte, onde os partidos estão sem se entender quanto à criação de um Executivo sustentável desde o início de 2017.
UE prepara saída sem acordo
A União Europeia considera que, neste momento, a possibilidade de uma saída sem acordo é bem maior do que já foi. Através de um porta-voz, Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, garantiu que os 27 fizeram tudo o que podiam e que soluções, se existirem, têm de germinar em Londres. “Do lado da UE fizemos tudo o que é possível para chegar a um acordo. Dadas as garantias adicionais fornecidas pela UE em dezembro, janeiro e esta segunda-feira, é difícil ver o que mais podemos fazer. Se há uma solução para o atual impasse, só pode ser encontrado em Londres”, disse.
Bruxelas, assegura Tusk num comunicado quase igual a outro emitido pela Comissão Europeia, “ainda defende um acordo de saída, incluindo o mecanismo de backstop, que serve para impedir uma fronteira física na Irlanda e preservar a integridade do mercado único, a menos e até que possam ser encontradas soluções alternativas”. Sublinhou ainda que, com um calendário tão apertado até ao dia de saída, “a votação de hoje aumentou significativamente a probabilidade de um Brexit sem acordo”.
Segue-se a frase mais assustadora para quem considera que a extensão do tempo de negociações é uma solução que irá colher imediatas simpatias em Bruxelas: “A UE espera uma justificação credível para uma possível extensão e quer saber a sua duração. O bom funcionamento das instituições da UE deverá ser assegurado em primeiro lugar”, foi o remate de Tusk, numa clara alusão ao futuro Parlamento Europeu.
Reações adversas de ambos os lados
A moção que vai a debate e votos esta quarta-feira, apresentada por May, diz o seguinte: “Esta Câmara recusa-se a aprovar uma saída da União Europeia a 29 de março de 2019 sem um acordo de saída e um enquadramento da relação futura com a União Europeia e faz notar que sair sem acordo continua a ser uma situação consagrada na lei do Reino Unido e da UE, a não ser que esta Câmara e a UE ratifiquem um acordo”.
Nos comentários que se seguiram ao debate e votação, muitas foram as vozes que se elevaram para criticar May, incluindo algumas que chegaram de dentro do seu próprio partido. Uma das análises mais cáusticas foi a de Bernard Jenkins, deputado que disse que May “perdeu o comando do seu conselho de ministros” e é agora “uma primeira-ministra mais pelo título do que pelas suas ações”.
Mike Gapes, ex-deputado trabalhista que recentemente desertou para se juntar aos “rebeldes” do Grupo Independente (oito ex-trabalhistas e três ex-conservadores europeístas e críticos da forma como os líderes dos respetivos partidos estão a negociar o Brexit), disse nunca ter visto um primeiro-ministro “tão claramente arrasado”.
A primeira-ministra da Escócia leva para casa, como se esperava, o prémio de “anti-Brexit” da noite. Nicola Sturgeon disse que o facto de “um punhado de deputados do DUP [unionistas irlandeses] ter maior influência sobre o futuro da Escócia do que o nosso próprio parlamento nacional demonstra mais claramente do que nunca que a defesa da independência escocesa é uma necessidade”.
Deixa bem clara a possibilidade de um segundo referendo à independência da Escócia, território que votou pela permanência na UE (62%) e se vê arrastada para o Brexit a contragosto. Uma amarga ironia, quando no referendo à independência, em 2014, um argumento contra a separação era que sair do Reino Unido implicaria ficar fora da UE.
Sturgeon pediu ainda a May que não permitisse a saída e aceitasse adiar o Brexit para permitir nova consulta popular. “Apoiaremos qualquer referendo, desde que tenha a opção de permanecer na UE no boletim de voto”, disse Sturgeon.
O líder parlamentar SNP (nacionalistas escoceses, partido de Sturgeon) em Westminster, Ian Blackford, disse que a liberdade de voto aos conservadores sobre a possibilidade de um ‘no deal’ era “um abandono lamentável do dever” por parte de May. A seu ver, a primeira-ministra “deve agir, de uma vez por todas, no interesse de todas as quatro nações do Reino Unido — e não apenas do seu próprio partido — e obrigar os seus parlamentares a votarem contra um Brexit sem compromisso e pela extensão do artigo 50.