Pelas rodas de samba, pelas escolas, a la capella, com bateria, sem bateria, o samba enredo da Mangueira anda há muito pelas ruas, becos e corações do Rio de Janeiro. “O nosso samba retomou o diálogo com a cidade,” disse Tomaz Miranda, um dos compositores do samba-enredo da Mangueira este ano.
A Mangueira não só fez história ao levar o nome de heróis esquecidos à mais reconhecida avenida do Brasil e ao arrebatar o Estandarte de Ouro logo após o desfile, como também sublinhou a urgência de um reescrever das narrativas de um país de índios, negros, “Marias, Mahins, Marielles, Malês.” Na segunda noite do desfile do Grupo Especial, na Sapucaí desfilaram pela Mangueira 3500 pessoas em 24 alas ao ritmo de “História para ninar gente grande” e assim foi ilustrado um olhar diferente da história do Brasil que conhecemos. A escola apresentou os heróis brasileiros que não estão nos livros, entre eles Marielle Franco, a ativista dos direitos humanos e vereadora do Rio de Janeiro que foi assassinada há um ano. A Mangueira deu as suas cores à bandeira do Brasil e em vez de “ordem e progresso” enalteceu “Índios, negros e pobres”. Amigos e colegas de partido de Marielle Franco seguraram esta nova bandeira do Brasil apresentada pela Mangueira.
A comissão da frente da Estação Primeira de Mangueira intitulava-se “Eu quero um país que não está no retrato”. De dentro de seis molduras saíram seis personagens celebrados pela história, entre as quais Pedro Álvares Cabral, D. Pedro I, a princesa Isabel, bandeirante Domingos Jorge Velho, Deodoro da Fonseca, Padre Anchieta, sendo substituídos por heróis índios e negros. A coreografia terminava com uma menina negra a abrir um livro de onde saía a palavra “Presente” em homenagem a Marielle Franco. Foi também homenageada Maria Felipe Oliveira, que liderou a resistência aos portugueses na Bahia, e Luiza Mahin, líder dos malês, negros escravizados. Um dos carros alegóricos trouxe a memória das mortes da ditadura, na frente a colunista Hildegard Angel, cujo irmão Stuart Angel foi torturado e assassinado em 1971 e a mãe, Zuzu Angel, morreu em circunstâncias suspeitas. Mônica Benício, esposa de Marielle, desfilou com uma t-shirt verde e rosa de “Lute como Marielle”.
A Mangueira chegou à apoteose (reta final do desfile) aos gritos de “é campeã”, nenhuma outra escola arrancou uma reação tão forte do público este ano. Os sorrisos rasgavam os rostos na certeza de um desfile histórico, o resultado da apuração na quarta-feira apenas confirmou a Mangueira como escola vencedora oficial do Carnaval 2019 do Rio de Janeiro.
“A Mangueira é uma escola que faz Carnaval para representar uma comunidade importante. Fazer esse Carnaval para a Mangueira é fazer um Carnaval de representatividade, esses homens e essas mulheres aqui são os heróis do meu enredo que merecem sempre ser exaltados, aqui mora o que tem de melhor neste país e o que tem melhor neste país faz a festa que o mundo todo aplaude. Aqui todo o mundo está vivo porque resiste,” declarou o Carnavalesco Leandro Vieira à Globo News após ter sido anunciada a escola vencedora do Carnaval 2019. “É um recado político para o país todo, que tem de entender que isto aqui é importante. É um recado também para o presidente Bolsonaro que o Carnaval é isso aqui, o Carnaval é a festa do povo, o Carnaval é festa popular, o Carnaval não é o que ele acha que é, o Carnaval é isso e ele devia mostrar ao mundo o Carnaval da Mangueira, o Carnaval da arte, o Carnaval da luta, o Carnaval do povo, o Carnaval da cultura popular.”
“A grande aceitação em relação a este samba deve-se ao fato de as pessoas se sentirem representadas. Na realidade, esta é a fala das maiorias, os índios eram maioria, os negros são maioria, os pobres são maioria, nós mulheres somos maioria, fomos maiorias caladas sem poder. A grande aceitação deste samba deve-se a esta representatividade que faz com que a maioria do país se sinta finalmente contemplada,” disse Manu da Cuica, compositora do samba enredo vencedor do Carnaval carioca 2019. “Citamos nomes de gente que as pessoas não conhecem para conseguirmos dar visibilidade a essas pessoas, não para as louvar como se tivessem recebido louros, não é para lamentar ou festejar, este samba enredo é mais uma conversa com o Brasil.”
Este foi o primeiro samba enredo escrito por Manu da Cuica que passou na Avenida, recebeu o muito conceituado Estandarte de Ouro e entregou vitória à Estação Primeira de Mangueira no Carnaval carioca 2019. As regras não permitiram que Manu assinasse o samba, pois já tinha assinado um outro samba para outra escola, mas isso não a impediu de gritar bem alto a sua letra e vestir com orgulho as cores verde e rosa da Mangueira. “O desfile da Mangueira conseguiu ser completo em termos de imagem, tivemos uma boa junção da música, com a história, com a coreografia. Quando isso acontece vivem-se momentos mágicos,” disse Manu. “A Mangueira arrebatou a Avenida.”
A sinopse do desfile da Mangueira, escrita pelo Carnavalesco Leandro Vieira, deu espaço a uma interpretação por parte dos compositores Manu da Cuica, Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino. “O samba não pode ser uma sinopse musicada, pegámos na sinopse e colocámos o que não estava. Na Avenida ver frases traduzidas em imagens é lindo demais,” disse Manu.
“Entendemos que a presença da Marielle dialogava com o que estava sendo proposto,” disse Tomaz Miranda. O samba enredo da Mangueira é um pouco fora da linguagem de um samba enredo. “Não temos refrão no meio, só temos refrão de baixo, a melodia é menos óbvia. Algumas coisas fogem ao que é esperado na forma,” disse Tomaz.
“Temos mais espaço entre frases, melodia livre que foge à receita de bolo e não obriga a dar ênfase a todo o momento. Não tem de ter fórmula, não tem de ter isso. Samba enredo tem de contar uma história e ir na Avenida com atenção à parte plástica. As pessoas criaram muitas regras e isso pode deixar as músicas muito parecidas. A gente quis fazer uma estrutura diferente, estamos a conversar com o Brasil, funciona melhor em estilo de conversa,” disse Manu.
Não foi só a Mangueira que homenageou Marielle no Carnaval do Rio. A ativista e vereadora teve várias homenagens por todo o Brasil, desde o carnaval de rua aos desfiles oficiais. Na Tuiuti, escola que no ano passado marcou o Carnaval com um enredo crítico da situação política da altura (trazendo um vampiro com a faixa presidencial que representava o então presidente Michel Temer), desfilou o deputado federal David Miranda com a t-shirt “Quem Matou Marielle Franco?”. A Vila Isabel trouxe como destaque a irmã e a filha de Marielle.
O Carnaval do Rio de Janeiro, considerado por alguns o maior espetáculo do planeta, continua e no próximo sábado, 9 de março, Sábado das Campeãs, a Mangueira irá desfilar na Sapucaí entre as escolas com melhor classificação deste ano: a Viradouro, a Vila Isabel, a Portela, o Salgueiro e a Mocidade Independente de Padre Miguel.
Enredo vencedor do Carnaval 2019 do Rio de Janeiro: História pra Ninar Gente Grande
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês