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Morreu Kim Bok-dong, antiga escrava sexual do exército japonês durante II Guerra Mundial

Morreu Kim Bok-dong, antiga escrava sexual do exército japonês durante II Guerra Mundial
Woohae Cho/Getty Images

Foi uma das vozes mais importantes na defesa das sul-coreanas obrigadas a trabalhar em bordeis japoneses e conhecidas como “mulheres de conforto”. Tóquio rejeitou sempre fazer um pedido formal de desculpas pelas cerca de 200 mil raparigas e mulheres forçadas à escravatura sexual. A última palavra de Kim foi “um palavrão contra o Governo japonês”

Morreu Kim Bok-dong, antiga escrava sexual do exército japonês durante II Guerra Mundial

Hélder Gomes

Jornalista

Kim Bok-dong, antiga escrava sexual do exército japonês durante a Segunda Guerra Mundial, morreu esta segunda-feira em Seul, aos 92 anos, vítima de cancro. Foi uma das vozes mais importantes na defesa das mulheres sul-coreanas que foram obrigadas a trabalhar em bordeis japoneses e ficaram conhecidas eufemisticamente como “mulheres de conforto”.

Até aos seus últimos dias, Kim exigiu reparações do Japão pelas cerca de 200 mil raparigas e mulheres, coreanas e de outros países asiáticos, forçadas à escravatura sexual durante a guerra. “A última palavra audível que proferiu antes de morrer foi, na verdade, um palavrão expressando a sua forte raiva contra o Governo japonês”, revelou Yoon Mi-hyang, presidente de um importante grupo sul-coreano de defesa dos direitos das mulheres exploradas.

“Ela ajudou-nos a ter a coragem de enfrentar a verdade”, disse o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, que se deslocou ao hospital onde Kim morreu para prestar a sua homenagem. Quando já se encontrava hospitalizada e foi visitada por jornalistas, Kim acusou o Governo do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, de se recusar a redimir-se adequadamente.

“Tinha de receber 15 soldados por dia. Aos sábados e domingos, eram mais de 50”

O jornal “The New York Times” recorda que, quando Kim fez 14 anos, o Japão, então potência colonial da Coreia (ainda antes da divisão em Norte e Sul), estava em guerra com a China. Ela foi recrutada para trabalhar numa fábrica de roupas por oficiais japoneses, que ameaçaram a sua família se ela recusasse. Em vez disso, viu-se forçada a fazer sexo com soldados em bordeis militares na China e, mais tarde, em Hong Kong, Malásia, Indonésia e Singapura até ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.

“Nos dias de semana, tinha de receber 15 soldados por dia. Aos sábados e domingos, eram mais de 50. Fomos tratadas pior do que animais”, disse uma vez. Quando voltou para a Coreia do Sul, no final da guerra, Kim escondeu o seu passado por vergonha, como a maioria das antigas escravas sexuais. Nunca casou nem teve filhos. “Nunca conheci o amor na minha vida”, referiu.

O silêncio só começou a quebrar-se no início dos anos 1990

À medida que o país transitava da ditadura militar para a democracia, o silêncio em torno da questão começou a desfazer-se. Em 1991, uma outra mulher, chamada Kim Hak-sun, tornou-se a primeira a identificar-se publicamente como uma das chamadas “mulheres de conforto”. Kim Bok-dong seguiu o seu exemplo no ano seguinte.

Devido à sua coragem e persistência, estas mulheres transformaram-se num símbolo do sofrimento da população da Coreia do Sul, que esteve sob o domínio colonial japonês entre 1910 e 1945. No total, 239 mulheres assumiram ter sido escravas sexuais – apenas 23 estão vivas, a maioria na casa dos 90 anos.

Um acordo “final e irreversível” que afinal não foi

O Japão rejeitou sempre fazer um pedido formal de desculpas e pagar reparações, alegando que as reivindicações decorrentes da era colonial ficaram resolvidas em 1965. Nesse ano, o Governo japonês pagou 300 milhões de dólares à Coreia do Sul como parte de um acordo que estabelecia laços diplomáticos entre os dois países. Mas em 2005, o Governo de Seul disse que aquele acordo não cobria “atos ilegais contra a humanidade”, como o recurso a escravas sexuais durante a guerra.

Uma década mais tarde, Shinzo Abe e a então Presidente sul-coreana, Park Geun-hye, firmaram um outro acordo, que foi descrito como a resolução “final e irreversível” do assunto. Ao abrigo deste acordo, o Japão pediu desculpas às mulheres e pagou pouco menos de nove milhões de dólares por uma fundação destinada a cuidar das sobreviventes nos seus últimos anos de vida.

Kim manifestou-se numa cadeira de rodas

No entanto, Kim e outras mulheres defenderam que o acordo ficava aquém do necessário, não contemplando reparações oficiais e uma declaração de responsabilidade legal por parte do Japão. No ano passado, Kim deixou a sua cama no hospital e, numa cadeira de rodas, manifestou-se à frente da fundação, que viria a ser encerrada pelo Presidente Moon Jae-in.

O funeral de Kim Bok-dong realiza-se em Seul na sexta-feira e, segundo os organizadores, o cortejo fúnebre passará pela embaixada japonesa.

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