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Direitos humanos. O mundo está cheio de regimes autoritários mas “a resistência está a ganhar força”

Direitos humanos. O mundo está cheio de regimes autoritários mas “a resistência está a ganhar força”
Marko Djurica/Getty

A União Europeia capturada pelo discurso do medo e do ódio. O Brasil mergulhado num ciclo de violência. A Guiné Equatorial numa espiral de corrupção. Moçambique num clima de impunidade. Angola com progressos significativos. E a Arábia Saudita e a Turquia a disputarem o trono de quem persegue mais jornalistas e opositores políticos. Foram estas as latitudes que mereceram maior atenção na leitura que o Expresso fez do relatório anual da Human Rights Watch. O documento da organização de defesa dos direitos humanos foi apresentado esta quinta-feira em Berlim

Direitos humanos. O mundo está cheio de regimes autoritários mas “a resistência está a ganhar força”

Hélder Gomes

Jornalista

No texto que assina no Relatório Anual de 2019, o diretor executivo da Human Rights Watch (HRW), Kenneth Roth, defende que na “batalha pela defesa dos direitos humanos”, da democracia e do estado de direito, “a resistência está a ganhar força”. Isto apesar do florescimento de regimes e líderes autoritários.

Em entrevista à agência Lusa, Roth acrescentou: “Poderíamos pensar que a defesa dos direitos humanos viria de países como os Estados Unidos, Reino Unido ou França mas, na verdade, eles têm estado ausentes. Trump está muito ocupado a acolher autocratas em vez de os combater, o Reino Unido está totalmente absorvido pelo Brexit e o Presidente francês tem falado muito mas feito muito pouco”. A resistência vem de “coligações de estados pequenos e médios e de aliados não tradicionais” mas também de “grupos cívicos ou da população em geral”, salienta.

Portugal não consta da lista de mais de 90 países analisados no relatório. Contactada pelo Expresso, Patricia Gossman, da HRW, explicou que “tal como em anos anteriores, o relatório não inclui um capítulo sobre todos os países onde a HRW trabalha”. “Na maior parte das vezes, a ausência de um país ou de um assunto reflete apenas limitações de pessoal ou recursos. A não inclusão de um país não significa que não existem preocupações relacionadas com os direitos humanos”, acrescentou.

O Expresso destaca algumas das avaliações feitas pela HRW em várias regiões do globo.

União Europeia. Populistas usaram a migração para criar medo

“Os líderes populistas de Estados-membros da União Europeia (UE) usaram a questão da migração para criarem medo e aumentarem o apoio nas urnas”, acusa a HRW no relatório. Essas práticas acabaram por influenciar “a posição europeia” sobre o assunto. As “divergências” no seio da União bloquearam o acolhimento de migrantes e requerentes de asilo, apesar de as chegadas destes terem “diminuído para níveis anteriores a 2015”, ano da grande crise migratória na Europa.

O que prevaleceu foi uma “abordagem anti-imigração austera e frequentemente oportunista de alguns Governos”, sublinha o documento, que individualiza, em seguida, alguns casos. Na Polónia, “o partido populista continuou no poder, apesar de ter perdido força nas eleições locais”. Na Alemanha, a agenda política ficou marcada por posições contra imigrantes, refugiados e muçulmanos. Na Dinamarca, foram criados guetos em defesa dos supostos “valores dinamarqueses”.

Houve ainda “casos de racismo ou de incitamento ao ódio em muitos países da UE”, designadamente, além dos casos já citados, na Bulgária, Eslováquia, Espanha, França, Grécia, Hungria, Itália e Reino Unido. Sobre este último país, a HRW lembra ainda que o Brexit “dominou as discussões públicas e ofuscou outras preocupações prementes”, como “o respeito pelos direitos dos cidadãos” no processo. O documento fala na “incerteza sobre os direitos de residência dos cidadãos europeus no Reino Unido e dos cidadãos britânicos em países da UE após o Brexit”.

Brasil. Ciclo de violência prejudica a segurança pública

“Os abusos cometidos pela polícia, incluindo execuções extrajudiciais, contribuem para um ciclo de violência que prejudica a segurança pública e põe em risco a vida de polícias e civis”, escreve a HRW sobre o Brasil. Em 2017, agentes da polícia, incluindo alguns que estavam de folga, mataram mais de cinco mil pessoas, o que representa um aumento de 20% relativamente ao ano anterior. A ONG não conseguiu ter acesso aos dados mais recentes, relativos a 2018.

As prisões brasileiras estão sobrelotadas, têm condições precárias e poucos funcionários. Estes três problemas são os que mais impedem as autoridades prisionais de manterem a ordem no interior dos estabelecimentos, “deixando os detidos vulneráveis à violência e ao recrutamento para gangues”, aponta o relatório. Além da violência policial e prisional, a violência doméstica também subiu: “no final de 2017, mais de 1,2 milhões de casos estavam pendentes nos tribunais brasileiros”.

O ano passado ficou também marcado pela entrada de milhares de venezuelanos no Brasil. Apesar de o país ter mantido as suas fronteiras abertas, a HRW afirma que há registos de vários ataques xenófobos contra venezuelanos, nomeadamente a sua expulsão de abrigos provisórios e a destruição dos seus bens pessoais.

Guiné Equatorial. Corrupção e pobreza minam os direitos humanos

Na Guiné Equatorial, que em 2014 aderiu à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), “a corrupção, a pobreza e a repressão de direitos civis e políticos continuaram a minar os direitos humanos”, aponta o relatório. As “vastas receitas do petróleo” serviram para financiar “o exuberante estilo de vida da elite política” em torno do Presidente Teodoro Obiang, que está no poder desde 1979.

A má gestão de fundos públicos, a tortura e os julgamentos sumários de opositores políticos são outros dos problemas detetados. No final de 2017, foram detidos 147 membros do único partido da oposição com representação parlamentar. Apesar de amnistiados pelo Presidente no ano seguinte, os seus advogados alegam que foram vítimas de abusos físicos de tortura, tendo um deles morrido na prisão.

Além disso, os escassos meios privados de comunicação social são controlados por pessoas próximas de Obiang e as liberdades de expressão, manifestação e reunião mantêm-se limitadas. Apesar deste quadro, a Guiné Equatorial assumiu, no início de 2018, um mandato de dois anos num dos lugares rotativos no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que demonstra “a relutância” da comunidade internacional em criticar o regime, conforme aponta a HRW.

Moçambique. Detenções arbitrárias e ameaças à liberdade de imprensa

No topo das preocupações citadas no relatório relativamente a Moçambique estão a impunidade, as detenções arbitrárias e as ameaças à liberdade de expressão. Apesar do compromisso do Governo de lutar contra as violações dos direitos humanos, os autores destes crimes não têm sido responsabilizados, sobretudo em zonas de conflito, como na província de Cabo Delgado.

Há também relatos de perseguições e sequestros, com destaque para o rapto e agressão do jornalista e jurista Ericino de Salema em março de 2018. A organização destaca igualmente as tentativas de limitação da liberdade de expressão, com a definição de novas taxas para a comunicação social. E ainda a violência contra pessoas portadoras de albinismo, que já causou um número indeterminado de mortos em províncias do norte e centro do país.

Angola. Há progressos mas persistem as violações graves

O relatório destaca “progressos significativos” no capítulo dos direitos humanos em Angola, apesar de ainda se registarem graves violações. O aspeto mais positivo é o combate à corrupção, promovido pelo Presidente João Lourenço, e que já levou à detenção de ex-governantes e homens de confiança do anterior Presidente, José Eduardo dos Santos, e à prisão preventiva do seu filho José Filomeno dos Santos.

No extremo oposto encontram-se as detenções arbitrárias, as execuções extrajudiciais, a falta de acesso a uma habitação condigna, as limitações à liberdade de expressão e de imprensa, a violação dos direitos de pessoas LGBT e a expulsão de imigrantes, especialmente os que fugiram das sucessivas vagas de violência na vizinha República Democrática do Congo.

Arábia Saudita e Turquia. O homicídio de Khashoggi e a perseguição a jornalistas

O assassínio do jornalista Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul, na Turquia, dominou grande parte da agenda mediática e pôs em confronto os dois países. Além do caso daquele jornalista crítico do regime, por cuja morte a cúpula de Riade enjeita responsabilidades, o reino saudita prendeu e torturou ativistas e dissidentes pacíficos e intensificou as prisões arbitrárias.

Apesar do levantamento da proibição de conduzir para as mulheres, estas continuaram a ser discriminadas, presas e torturadas em 2018. Houve, aliás, uma coordenação em larga escala da repressão contra um movimento pelos direitos das mulheres. As minorias religiosas também foram alvo de perseguições.

Quanto à Turquia, cujo Presidente Recep Tayyip Erdogan se destacou na condenação do reino saudita pela morte de Khashoggi, o país continuou a ser o líder mundial em jornalistas presos. São 175 os detidos, estando outras centenas a ser julgados em liberdade. Numa nota positiva, o país continua a acolher o maior número de refugiados do mundo, cerca de 3,5 milhões do quais vindos da Síria.

Outros casos. Armas proibidas na Síria, repressão na Venezuela

A Síria voltou a ser palco de ataques indiscriminados dos vários intervenientes na guerra civil, que “mataram e feriram centenas de civis”. Foram ainda utilizadas armas proibidas, incluindo armas químicas, pela aliança militar sírio-russa.

Na Rússia, aumentou a repressão governamental contra a oposição política, antes e depois da reeleição de Vladimir Putin. Em maio, mais de um milhar e meio de pessoas, incluindo 158 crianças, foram detidas durante protestos pacíficos. O principal opositor de Putin, Alexei Navalny, foi impedido de concorrer às eleições presidenciais.

A repressão de políticos também marcou o ano na Venezuela, bem como a crise profunda que provocou graves falhas no abastecimento de bens essenciais e um êxodo maciço de pessoas na maior crise migratória do género na história da América Latina.

Os EUA assistiram a uma degradação do respeito pelos direitos humanos, que a HRW imputa à justiça discriminatória e à política interna e externa do Presidente Donald Trump. Os crimes de ódio, a separação de famílias de migrantes na fronteira com o médio e a saída do acordo nuclear com o Irão e do Conselho dos Direitos Humanos da ONU são outros dos aspetos negativos apontados.

Na China, o relatório destaca a abolição do limite de mandatos para o cargo presidencial como uma medida “emblemática da crescente repressão” promovida pelo Presidente Xi Jinping. Os abusos sistemáticos contra as minorias étnicas de origem muçulmana “aumentaram acentuadamente”. Cerca de um milhão de cazaques e uigures estão detidos em campos de reeducação, onde são forçados a criticar o Islão e a própria cultura, na região de Xinjiang, no extremo ocidental do país.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hgomes@expresso.impresa.pt

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