Os horrores dos Khmer Vermelhos cessaram há 40 anos mas o Camboja não é um país em liberdade
Hun Sen durante as celebrações do 40º aniversário da queda do regime do Khmer Rouge
Kyodo News/Getty
Apesar de ter crescido economicamente durante os 33 anos que já dura o mandado do primeiro-ministro Hun Sen, o Camboja é cada vez mais um país onde as liberdades individuais são postas em causa porque qualquer dissidência pode ser “voltar ao passado”
Faz esta segunda-feira 40 anos que as ruas de Phnom Penh, a capital do Camboja, voltaram a pulsar de gente. Primeiro foram os vietnamitas, com os seus carros de combate e a sua marcha coordenada; depois os civis que tinham sido retirados das suas casas e das vidas durante o terrível regime do ultra-maoista Pol Pot e que começavam a voltar para ver o que tinha sobrado de umas e de outras.
Pol Pot e os seus homens mataram entre 1,5 e três milhões de pessoas em três anos, oito meses e 20 dias de um dos mais violentos regimes da História do século XX. Cerca de um quarto da população do Camboja morreu num genocídio que assumiu muitas formas: execuções em massa, trabalhos forçados, fome, doença, tortura.
Os testemunhos recolhidos junto do Estádio Nacional, onde aconteceram as celebrações, são impressionantes. Seang Tharuon, de 69 anos, perdeu 11 irmãos e ambos os pais durante a ditadura. Foi forçada a casar-se e como milhares de outras pessoas, teve que abandonar a capital quando a perseguição começou. "Tínhamos principalmente papas para comer e deixavam-nos comer arroz uma vez por mês", disse Seang Tharuon à Reuters.
Objetivo: um exército de agricultores guerrilheiros
Pol Pot quis criar um exército de agricultores guerrilheiros mas pregava uma pobreza que nunca experimentou. Nasceu com o nome de Saloth Sâr, num Camboja ainda francês. Era filho de um latifundiário e estudou nas melhores escolas do país - e depois de França. Haveria de se tornar professor da língua dos colonizadores e depois disso fez da sua vida uma luta contra todos os intelectuais do país. E intelectual, para ele, era toda a gente que usasse óculos, lesse francês, soubesse curar um doente ou tivesse aspirações na vida que não fossem as de pertencer a uma sociedade totalmente agrária, sem distinção de classes.
As celebrações desta segunda-feira juntaram multidões na capital do país e foram presididas por Hun Sen, primeiro-ministro que ocupa o mesmo lugar há 30 anos. É o governante há mais tempo à frente de um país em todo o mundo e é também ex-guerrilheiro de Pol Pot. A meio da campanha de terror desertou e acabou por ajudar a derrubar o regime. A invasão do Vietname, em 1979, chegou em resposta aos assassinatos que o regime Khmer Vermelho cometia na fronteira entre os dois países, mas o avanço das tropas de forma relativamente fácil até à capital só foi possível porque alguns generais de Pol Pot ofereceram os seus serviços aos vietnamitas. O próprio Pol Pot conseguiu fugir num jipe para a floresta no dia da entrada das tropas vietnamitas. Morreu de ataque cardíaco em prisão domiciliária em 1998.
O regime tinha caído mas a Guerra Civil haveria de continuar a matar até ao início dos anos 1990 e, por isso, nem toda a gente vê este dia como um dia de libertação. Apesar de este ser o dia em que os cambojanos celebram o fim do regime, o Camboja de hoje não é um lugar de liberdade. Há eleições mas não se pode dizer que seja um regime democrático - é só muito menos violento do que já foi. A população tem o acesso à informação muito restringido, os partidos e os jornais estão esmagados pelo peso das enormes imposições fiscais, multas, processos por difamação e ‘lesa pátria’ impostos pelo governo.
Libertação ou ocupação?
O Partido Nacional de Salvação do Camboja (CNRP) e os seus principais rostos (um deles, Sam Rainsy, vive em França desde 2015, e o seu sucessor, Kem Sohka, está preso) rotulam o 7 de Janeiro como um dia de ocupação - um dia que marca a invasão do Camboja pelo exército vietnamita que, na opinião da oposição, nunca saiu do país. Rainsy, que fugiu perante as acusações de corrupção, atentado à segurança pública, traição ao Estado e todas as outras alegações que o governo de Hun Sen lhe tem colado para evitar que ele se posicione como um perigo político, considera que Hun é apenas uma marioneta do Vietname. Os analistas políticos, por outro lado, não apoiam a postura de nenhum deles e consideram que ambos continuam a lutar uma guerra civil que já acabou e a desprezar os problemas bem contemporâneos dos 15 milhões de cambojanos.
Só que falar de liberdades tornou-se sinónimo, porque assim o impôs o discurso dominante (leia-se, permitido), de instabilidade, rebeldia, revolta, tudo coisas que os cambojanos associam à revolução de Pol Pot. “Quando a liberalização aconteceu houve um regresso a tudo o que era tradicional: a religião, os valores da família, o conservadorismo nos comportamentos e um sistema de fazer política pouco aventureiro”, explicou à revista "Time" Sebastian Strangio, repórter e autor do livro “O Camboja de Hun Sen”.
Além disso, Hun Sen e os seus ministros agem como se mandassem na História e no curso dela porque libertaram o Camboja das garras daquele regime. “Hoje, celebramos esta cerimónia para reavivar a memória indelével dos crimes mais hediondos do regime de Pol Pot", afirmou Hun Sen nas celebrações desta segunda-feira.
“Desde o primeiro momento em que o regime caiu, todo o legado passou a ser usado como arma política”, disse Strangio. A existência do espectro do outro regime é essencial para a sobrevivência deste. “O CPP (partido de Hun Sen) coloca-se totalmente no papel daqueles que, sem mais ajudas, deram ao Camboja uma espécie de segunda oportunidade de vida, depois dos horrores dos Khmer Vermelhos”, acrescentou.
Oposição cresce e Hun Sen aperta o cerco sobre as liberdades civis
Nos últimos anos, o punho de Hun Sen tem apertado à volta das liberdades civis com algumas cenas de grande violência entre a polícia e os manifestantes, como as que foram registadas no ano passado. A situação piorou em 2013 quando o Partido Nacional para a Salvação do Camboja conseguiu 44% dos votos, 55 assentos na Assembleia Nacional e o melhor resultado de sempre de um partido da oposição no Camboja.
“Foi um grande choque para o CPP em 2013 e por isso é que Hun Sen está a entrar numa espiral de controlo e repressão porque quer ter a certeza de que não existirão mais surpresas como estas no futuro”, disse, também, à "Time", Carl Thayer, um analista de assuntos regionais da Academia Militar da Austrália.
Hun Sen dissolveu o partido que lhe metia medo, mas metade da população do Camboja tem menos de 24 anos e estes jovens não vão querer discutir uma guerra civil que já tinha acabado quando nasceram.
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