De Nazaré a Belém, 2018 anos depois
Bíblia. O trilho percorrido por José e Maria a caminho de Belém, onde nasceria Jesus Cristo, far-se-ia hoje entre checkpoints militares, colonatos, campos de refugiados e paredes de betão (artigo integral)
Bíblia. O trilho percorrido por José e Maria a caminho de Belém, onde nasceria Jesus Cristo, far-se-ia hoje entre checkpoints militares, colonatos, campos de refugiados e paredes de betão (artigo integral)
Jornalista/Coordenador-Geral de Infografia
Jornalista
A Bíblia é omissa em pormenores mas, no terceiro Evangelho, São Lucas refere-se à viagem de José e Maria, nas vésperas do nascimento de Jesus. “Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto para ser recenseada toda a terra. (…) Todos iam recensear-se, cada qual à sua própria cidade. Também José, deixando a cidade de Nazaré, na Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e linhagem de David, a fim de se recensear com Maria, sua esposa, que se encontrava grávida. E, quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz.”
Nos dias de hoje, esse seria um percurso bastante sinuoso. O casal teria de atravessar duas entidades políticas e ultrapassar obstáculos decorrentes de uma das disputas mais insolúveis do nosso tempo — o conflito israelo-palestiniano.
A cidade que identifica a origem de Jesus situa-se hoje no norte de Israel. Até à criação do Estado judeu, em 1948, tinha uma matriz cristã. Após a eclosão da primeira guerra israelo-árabe (1948-49), a região recebeu um grande fluxo de palestinianos em fuga ou expulsos de suas casas. Hoje, Nazaré é a maior cidade árabe israelita, com cerca de 75 mil habitantes, maioritariamente muçulmanos.
Para os peregrinos cristãos que rumam à Terra Santa, é paragem obrigatória, como Belém (onde Jesus nasceu) e Jerusalém (onde morreu). Junto às ruínas da carpintaria de José, ergue-se a Igreja de São José. E sobre os vestígios da casa de Maria foi construída a Igreja da Anunciação, muito procurada para casamentos de cidadãos israelitas árabes cristãos.
Seguindo para sul, o caminho faz-se entre povoações que ora falam árabe e rezam em igrejas ou mesquitas ora se expressam em hebraico e frequentam sinagogas. Uma delas é o moshav de Balfurya — um moshav é uma propriedade agrícola comunitária —, fundado em 1922 e assim batizado em homenagem ao conde de Balfour, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, que cinco anos antes defendera um “lar judeu” no território histórico da Palestina. Em 2017, viviam ali 491 pessoas.
Não muito longe, Mqeibleh é uma aldeia árabe com população cristã e muçulmana. É o último aglomerado antes da fronteira.
Cerca de 20 quilómetros para sul de Nazaré, o checkpoint de Jalamah assinala a fronteira entre Israel e o território palestiniano ocupado da Cisjordânia. Junto ao este posto de controlo, ergue-se o muro — a que Israel chama “vedação de segurança” — que, ora em betão ora em arame, vai contornando o território palestiniano.
Quem ali vive diz que o muro é uma forma de Israel roubar terras que não lhe pertencem, já que nem sempre o traçado do muro coincide com a Linha Verde, a fronteira estabelecida pelo Armistício de 1949 e internacionalmente reconhecida.
Em vários pontos, o muro corta aldeias ao meio, dividindo famílias e, por vezes, separando a casa do quintal. Para quem fica com propriedades no “lado errado” do muro, as burocracias exigidas para ir de um lado ao outro impossibilitam a prática agrícola — o ganha-pão.
No checkpoint, só passam árabes com cidadania israelita ou palestinianos da Cisjordânia devidamente autorizados pelas autoridades de Telavive. É o caso de muitos trabalhadores que moram na Cisjordânia e labutam em Israel.
Situada no coração de uma área agrícola fértil, Jenin foi outrora uma movimentada zona comercial — até que o muro a privou de liberdade de acesso aos mercados da região e a Intifada de Al-Aqsa (a segunda, entre 2000 e 2005) fez da povoação alvo da retaliação israelita.
Em Jenin fica o campo de refugiados mais a norte da Cisjordânia, estabelecido em 1953 e onde vivem 14 mil pessoas. Vistos por Israel como bastiões de militância, nem o campo nem a cidade estão a salvo de incursões do exército judeu (Tsahal). Muitas vezes pela calada da noite, invadem povoações, revistam casas, interrogam famílias, confiscam bens e detêm pessoas sem acusação.
A 45 quilómetros de Jenin surge Nablus, uma das cidades mais antigas do mundo, referida na Bíblia como Shechem. À semelhança de Jenin, Nablus é uma fortaleza de resistência à ocupação israelita, o que a sujeita a raides militares israelitas. Está também exposta à violência de colonos judeus que, com frequência, vandalizam sobretudo olivais.
A sul de Nablus, o colonato de Yitzhar — fundado em 1984 e onde vivem 1500 judeus — tem fama de ser dos mais violentos. Atacam não só povoações palestinianas mas também as próprias forças israelitas.
É o maior dos 19 campos de refugiados existentes na Cisjordânia, geridos pela UNRWA, agência das Nações Unidas criada em 1949 para responder ao êxodo palestiniano que se seguiu à criação de Israel. Então, estavam em causa à volta de 750 mil pessoas; hoje, mais de cinco milhões estão habilitadas a recorrer aos serviços providenciados pela ONU, em campos na Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jordânia, Líbano, Síria e Jerusalém Oriental. Se antes viviam em tendas, hoje moram em prédios. O que devia ter sido uma situação temporária tem — na falta de paz — um carácter cada vez mais definitivo.
O atual mandato da UNRWA termina em 2020. Até lá, a agência lutará com dificuldades inesperadas: em agosto, os EUA — o maior doador — cortaram o financiamento.
Segundo a ONG israelita B’Tselem, em janeiro de 2017 havia 98 checkpoints fixos na Cisjordânia, 59 dos quais internos, como o de Huwwarah, passagem obrigatória para quem vai para sul.
A pé ou de carro, pode ser-se interrogado sobre os motivos da deslocação. A espera na fila pode ser demorada e mesmo ambulâncias podem ter de aguardar por vez. Várias mulheres já deram à luz em checkpoints. Em Huwwarah, um bebé morreu a 12 de setembro de 2008, após nascer prematuro no local.
O funcionamento dos postos de controlo obedece a horários rígidos. Em épocas de tensão — após atentados, ataques isolados ou bombardeamentos à Faixa de Gaza, por exemplo —, os checkpoints podem encerrar.
Para Israel, os checkpoints são fundamentais para abortar planos de ataque contra judeus, nomeadamente os mais de 500 mil colonos que vivem na Judeia e Samaria (como o Estado hebraico chama à Cisjordânia). Cerca de 4 mil vivem em Shilo, colonato religioso fundado em 1978 de forma engenhosa — e em terras privadas, denunciam os palestinianos. Aproveitando a existência na zona de vestígios arqueológicos com significado para os judeus, uma comunidade liderada pelo extremista Ira Rappaport obteve autorização do Governo para aí fazer uma escavação arqueológica. O aglomerado foi crescendo, em dimensão e habitantes.
Em nome do bem-estar nos colonatos — ilegais, ao abrigo do direito internacional —, há estradas só para judeus, que beneficiam também de acesso privilegiado às melhores terras e aos recursos hídricos, com prejuízo sobretudo das populações nómadas beduínas.
Este apartheid é fonte de tensão permanente. A 9 de dezembro, sete judeus foram feridos a tiro num entroncamento perto do colonato de Ofra, na região de Ramallah, durante uma vigília noturna.
É a capital administrativa da Autoridade Nacional Palestiniana, que, pelos Acordos de Oslo (1993), é o Governo provisório até à proclamação da independência e subsequente eleição de órgãos de soberania. Em Ramallah (e na cidade adjacente de Al-Bireh) estão sediadas as principais instituições palestinianas, bem como representações diplomáticas.
A cidade é, por isso, naturalmente cosmopolita, economicamente dinâmica e socialmente mais aberta, com restaurantes modernos e bares com todo o tipo de álcool e plasmas sintonizados em partidas de futebol das principais ligas europeias.
Para se ir de Ramallah a Belém, há duas opções. Uma implica atravessar o checkpoint da Qalandia, passagem obrigatória para quem quer ir para Jerusalém. No exterior, o muro que passa rente é uma autêntica galeria, transformado em tela por artistas e ativistas de todo o mundo que expressam a sua oposição à ocupação da Palestina através de grafitos.
O caminho alternativo permite contornar o posto, mas é mais longo. Esta opção dá razão aos palestinianos quando dizem que os checkpoints surgem no caminho para lhes infernizar o dia a dia, fazendo-os gastar mais tempo e dinheiro. Vencidos pelo cansaço, talvez um dia partam dali.
Discreta aldeia nas imediações de Belém, estima-se que corresponda ao campo de pastores que, segundo São Lucas, recebeu a visita do anjo: “Não temais, porque aqui vos trago novas de grande alegria (...). Pois, na cidade de David, nasceu hoje o Salvador.”
Passados cerca de 100 quilómetros, por fim Belém. Para entrar na cidade há que atravessar mais um checkpoint junto ao muro que, como o da Qalandia, é uma montra de street art. Em 2017, à distância de uma rua para o muro, foi ali inaugurado o Walled Off Hotel, que promete “as piores vistas do mundo”. Inacessível a qualquer bolsa, é propriedade de Banksy, o misterioso artista britânico que assina muitos grafitos no muro.
Como acontece por todo o Médio Oriente, a população cristã de Belém está em queda. Outrora esmagadora, em 2016 não ia além dos 16%. Resiliente, a cidade — cujo presidente da Câmara é sempre um cristão (atualmente uma mulher, Vera Baboun) — não esquece a herança que a notabiliza. Todos os anos é montada uma grande árvore de Natal na Praça da Manjedoura. Contígua, a Igreja da Natividade abriga a gruta onde se crê que Jesus nasceu.
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