“Nesse processo surgiu um novo líder da esquerda, o Haddad. Ele cresceu nessa luta e vai liderar a resistência”
Marcelo Chello/EPA
No bairro de Higienópolis, endereço da classe média alta paulistana, um grupo de pessoas que lutou contra a ditadura juntou-se para acompanhar os resultados das eleições no Brasil. A manhã que tinha sido de esperança deu lugar à deceção e perplexidade: de onde saia todo esse ódio, esse comungar com preceitos de extrema-direita? Esse namoro com o fascismo?
O silêncio tomou conta da sala. Prostradas nos sofás, as pessoas olhavam para a tela da televisão como autómatos. “Jair Bolsonaro eleito presidente do Brasil.” O estrondo dos foguetes cortou a noite. Gritos, aplausos, buzinas. Festa nas ruas, é isso mesmo? Até que alguém disse: “Gente, eu nunca achei que iríamos perder. Acreditei até o último momento que tinha um jeito de conseguir virar. Tinha esperança, juro”. O bairro de Higienópolis, endereço da classe média alta paulistana, festejava. Alguém foi à janela e gritou um palavrão.
No apartamento estava reunido um grupo de pessoas que lutou pela democracia, voto a voto, até o final”. Uma moça de 30 anos tirou os óculos e limpou as lágrimas. A sua amiga ligou de Madrid aos prantos. Alguém mais chorou.
Por que era tão difícil realizar uma vitória já anunciada há tanto tempo? O que todos confessavam era sua perplexidade diante desse Brasil que agora se manifestava. De onde saia todo esse ódio, esse comungar com preceitos de extrema-direita? Esse namoro com o fascismo?
Silêncio, Bolsonaro vai fazer seu primeiro “live”. Prefere aparecer totalmente fora de foco a dar as caras para a imprensa. É seu primeiro ato como presidente eleito. Ele mesmo lê um texto bíblico ao lado da mulher e de uma interprete de sinais. Avisa que vai cumprir tudo o que prometeu. E que não dava mais para aguentar um país que flerta com o socialismo, com o comunismo e com a esquerda.
Nas redes sociais começam a chegar as primeiras mensagens do Rio de Janeiro, falando do pessoal que está em frente à casa do capitão reformado, e de onde provêm gritos indistintos na televisão. Se aqui o clima é de depressão, lá é de alegria. Uma faixa chama atenção de um internauta: “Ustra Vive” – é uma homenagem ao general Brilhante Ustra, um dos torturadores mais notórios do regime militar, ídolo de Bolsonaro. Alguém, também do Rio, twita: “Aqui na rua, em Laranjeiras, estão gritando: ‘Comunista vai pra Cuba’”.
D.R.
Na sala, as atenções se dividem entre a televisão e as redes sociais, nos smartphones. Ali estão pessoas de várias profissões, todos profissionais liberais: produtores e diretores de cinema, um fotógrafo, um ator e diretor de teatro, uma historiadora, uma psicanalista, um advogado, uma publicitária. Há eleitores que apoiaram Ciro Gomes, Marina Silva, Fernando Haddad.
Manhã de esperança
A convocação para um almoço em 28 de outubro de 2018, domingo, dia da segunda volta das eleições que, fatalmente, entrarão para história, escancarava uma mensagem: “Almoço democrático”. A imagem era a Mafalda, personagem do cartoonista argentino Quino, com um dicionário nas mãos: “DEMOCRACIA: (Del grego, demos, Pueblo, y kratos, Av – Autoridad) Gobierno en que el Pueblo ejerce la soberania”. Seria um dia difícil, todos sabiam.
Mas a manhã havia sido de esperança e alegria com a chegada de Haddad cercado por cantos, flores e livros. O cardápio do almoço, das entradas à sobremesa, ajudou a criar um clima descontraído em volta da mesa e serviu para espantar a apreensão generalizada. Havia vinhos argentinos, chilenos, italianos. Teve quem chegasse avisando que já estava medicado. No grupo já havia sugestões de chá para a ressaca. Gostaram da comida, perguntou o anfitrião? Nós aqui estamos combinando de fazer estes pratos para vender em Portugal, conforme o resultado.
Depois, não havia mais ambiente para graça. Toda a discussão agora era sobre os erros de Lula, sua “egotrip”, e a situação em que colocou Haddad, para quem passou o bastão nos 45 minutos do segundo tempo. Foi aí que alguém disse: “Vamos sair desta depressão, deste baixo astral, gente. Nesse processo surgiu um novo líder da esquerda, o Haddad. Ele cresceu nessa luta e vai liderar a resistência”.
No Whatsapp do grupo postam uma foto e uma frase de Darcy Ribeiro (1922-1977), figura maior da antropologia brasileira: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei uma universidade séria, não consegui. Mas meus fracassos são minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem venceu”.