Internacional

Ex-CIA “dispara” contra Kim e Obama

Os anos da fome ficaram para trás e há sinais de uma tímida reforma económica.
Os anos da fome ficaram para trás e há sinais de uma tímida reforma económica.
ED JONES/AFP/GETTY IMAGES

Em entrevista ao Expresso, o agente secreto americano com maior número de missões em Pyongyang expõe o interior do Estado-pária e destaca os tiros nos pés de Washington

Ex-CIA “dispara” contra Kim  e Obama

Ricardo Lourenço

Correspondente nos Estados Unidos

Hordas de esqueletos andantes pairam no centro da capital norte-coreana à procura de migalhas no comércio moribundo. Alguns perecerão exaustos, reciclando-se em alimento para os cães abandonados que também lutam para sobreviver, num ciclo de vida macabro ilustrativo do pior pesadelo na história de Pyongyang.

Em breve, mais de 3,5 milhões de pessoas morrerão de fome ou de doença provocada pela subnutrição. “Mesmo assim, os sobreviventes, sobretudo os do campo que tinham comida, continuavam amorfos, com o cérebro lavado por um regime disposto a matar o povo para sobreviver”, conta, numa entrevista exclusiva ao Expresso, Robert Carlin, o espião americano com o maior número de missões na Coreia do Norte (mais de 40), quer ao serviço da CIA como da Unidade de Serviço de Informações do Departamento de Estado americano.

Desde aquela altura, em meados da década de 90, até hoje, Carlin surpreende-se sempre que reentra no país. Durante a última visita, no final do ano passado, confirmou que o regime iniciou pequenas reformas económicas. “Há trânsito automóvel, pessoas nas ruas e atividade comercial. Até já existe iluminação pública”.

Algumas das lojas abandonadas ressuscitaram. “Já é permitido aos pequenos comerciantes e empresários reter algum lucro do seu trabalho — antigamente era todo desviado para o Estado. Esse dinheiro é usado para gastar em coisas simples da vida, mas que fazem o motor económico funcionar. Quem tiver dinheiro, pode ir a um café no centro da cidade, comprar uma peça de roupa... As autoridades já não consideram suspeito esse tipo de comportamento consumista.”

Apesar da evidência, “as autoridades recusam usar a palavra reforma”, porque temem passar a ideia de que “cederam ou deixaram de controlar tudo”. O modelo chinês, de lenta adaptação aos costumes capitalistas, serve de inspiração, uma constatação que os locais consideram ofensiva. “Eles não gostam de ser comparados aos chineses porque consideram-nos um bando de traidores. Ainda hoje não esquecem as sucessivas facadas nas costas durante os anos 90, altura em que Pequim pouco fez para bloquear as sanções da ONU.”

“A dor de cabeça” nuclear

Atualmente professor na Universidade de Stanford, na Califórnia, (continua como negociador, mas sem ligações oficiais às secretas), Carlin frisa que, apesar das pequenas mudanças internas, a Coreia do Norte desenvolve um programa nuclear inadmissível para a comunidade internacional. “Para eles a vida vai mudando, mas para nós tudo ficou na mesma, visto que a dor de cabeça persiste, ou seja, a possibilidade de uma guerra nuclear na península coreana”.

O perigo de que o superespião fala manifestou-se mais uma vez, na terça-feira, após o disparo de um míssil norte-coreano que sobrevoou o norte do Japão. Seguiu-se a resposta de Seul e Washington, dois dias depois, com dez aviões a bombardearem uma zona remota no sul da península, perto da fronteira, no âmbito das manobras militares anuais conjuntos.

A retórica inflamada também voltou. O Presidente dos EUA, Donald Trump, garantiu quarta-feira que “conversar não é solução”, enquanto o seu homólogo coreano, Kim Jong-un, avisou que as ações recentes são “um prelúdio para conter Guam”, o território americano no Pacífico que classificou como “base do agressor imperialista”.

Os secretários de Defesa e de Estado americanos, James Mattis e Rex Tillerson, respetivamente, colocaram água na fervura e asseveraram que a diplomacia persiste como a melhor opção em cima da mesa, embora a solução militar se mantenha como alternativa.
A tensão é tal que todos os entrevistados pelo Expresso (conversámos também com Michael Hayden, ex-diretor da CIA, Sue Mi Terry, ex-membro da secreta, e Balbina Hwang, a conselheira sénior do Departamento de Estado que participou nas negociações com Pyongyang entre 2002 e 2010) consideram que a irresponsabilidade do regime ditatorial forçou chineses, americanos e russos a ficarem no mesmo lado da barricada.

“A história move-se de forma misteriosa e as rivalidades dependem das circunstâncias. A desestabilização da Coreia seria má para toda a gente por causa do contágio nuclear a grupos terroristas”, afirma Carlin.

Negociações secretas

Terry lamenta que após os esforços levados a cabo nos anos 90, durante a Administração Clinton, se tenha optado por uma atitude de “esperar para ver”. Hwang, por sua vez, recorda o que nos tinha dito recentemente: “No caso de Bush, eles perceberam que os EUA estavam com a cabeça no Iraque e no Afeganistão. No caso de Obama, concluíram que as suas linhas vermelhas não existiam.”

Mas também há uma razão operacional para a falta de resultados. “As pessoas imaginam que a CIA sabe de tudo e que opera em locais secretos ao estilo da série ‘Homeland’. Nem sempre é assim. No caso da Coreia, andamos às apalpadelas. É muito difícil recrutar agentes locais”, garante Terry. A ex-conselheira do Departamento de Estado reforça esta ideia: “Ninguém arrisca cooperar porque o regime não perdoa. Estamos a falar de um líder (Kim Jong-un) que mata familiares por desconfiar de um sussurro.”

Carlin reconhece que as condições no terreno não são as melhores, mas lembra os encontros ao longo dos últimos 16 anos com elementos do governo norte-coreano em missões classificadas como “Task 2” — encontros levados a cabo por ex-agentes, que, fruto da longa experiência, permanecem em contacto com os interlocutores da ditadura. “Umas vezes é em Berlim, outras em Londres...”, explica.

Esta via alternativa de diálogo justifica-se porque “Kim Jong-un não quer ouvir ninguém”, salienta mais uma vez Hwang. “Ele recusa reunir-se até com o Presidente chinês (Xi Jinping)”.
Ninguém espera mudanças no comportamento do jovem tirano. Contudo, a culpa do problema nunca ter sido resolvido divide-se também entre as duas últimas Administrações americanas, concluem as fontes contactadas.

“Ambas tiveram um número limitado de encontros oficiais com os norte-coreanos. Durante a Presidência de Barack Obama esses contactos foram quase zero! Julgavam que não era vantajoso do ponto de vista político e seguiram-se oito anos de nada. Por contraste, com Bill Clinton tivemos centenas e centenas de reuniões com representantes de Pyongyang. Resultado? A central nuclear de Yongbyon foi desativada”, assegura Carlin.

Embora vários elementos da CIA tenham insistido com Obama sobre a necessidade de redobrar os esforços, visto que o arsenal nuclear norte-coreano continuaria a crescer, foi-lhes dito que a guerra contra o terrorismo ocupava todas as mentes. “Isso acabou por criar um problema maior no longo prazo como se vê”, acusa o general Michael Hayden.

Carlin lamenta a perda de tempo. “O mais irónico é que hoje teme-se que estas armas de destruição maciça possam chegar às mãos dos terroristas. Ou seja, nem resolvemos uma coisa nem outra. No geral, a situação ficou mais perigosa.”

Trump melhor do que Obama

Por contraste, todos os entrevistados aprovam o trabalho da atual Administração, não tanto as palavras, mas as ações de James Mattis e Rex Tilersson. “Estou surpreendido porque em poucos meses houve mais passos positivos do que durante toda a Administração Obama”, destaca Carlin. “Veja-se o secretário de Defesa, que, em vez de afirmar que os EUA podem reduzir a pó a Coreia do Norte, preferiu avisar que se houver uma nova guerra na península coreana será a mais horrenda de sempre. Isto não é discurso inflamado, é realismo. Ao mesmo tempo, temos Tillerson a garantir que a Administração está a tentar dialogar com Pyongyang desde fevereiro, tendo mesmo convidado uma delegação a viajar até Nova Iorque, o que quase resultou... Há um jogo a decorrer e que vai muito além das frases polémicas.” Crítico acérrimo do atual Presidente americano, Michael Hayden concorda, contudo, que “a Casa Branca tem um plano coerente para lidar com a ditadura comunista”, aplaudindo o fim da “paciência estratégica de Obama”.

Porém, o estilo de Trump, marcado por declarações polémicas via Twitter ou conferências de imprensa incendiárias, como a que realizou após os confrontos em Charlottesville entre neonazis e manifestantes, onde equivaleu uns aos outros, cria algum nervoso miudinho.

Carlin, por exemplo, reconhece que é possível “imaginar um cenário radical”. “Principalmente se Kim Jong-un perder a paciência e disparar um míssil que atinja o que não deve — aliados ou território americano. Mas não antevejo confrontos no curto prazo. Ainda há muito por explorar. Tal como o secretário Tillerson nos aconselhou a fazer, durmo sossegado à noite (risos)”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: correspondenteusa@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate