Internacional

27 de maio: órfãos de pais e da terra

29 maio 2017 12:30

Nicolau Santos

Nicolau Santos

Diretor-Adjunto

Gustavo Costa

Correspondente em Luanda

Da série de testemunhos de sobreviventes e familiares de vítimas do 27 de maio, como ficou conhecido o movimento que há 40 anos marcou o início de dezenas de milhares de execuções, publicamos o segundo conjunto de depoimentos, de Che, filho de José Van-Dunem e Sita Valles, e de Nelson Vieira Lopes, filho de Elisiário Vieira Lopes. O assunto é o tema de capa da revista E, que chegou no sábado às bancas

29 maio 2017 12:30

Nicolau Santos

Nicolau Santos

Diretor-Adjunto

Gustavo Costa

Correspondente em Luanda

Che

Che

“Nasci em Luanda em Fevereiro de 1977, três meses antes do 27 de Maio. A partir desse dia, com o desaparecimento dos meus pais (e de outros familiares e amigos) e perante a falta de informação sobre o seu paradeiro, num contexto de caça ao homem e fuzilamentos em larga escala em todo o país, os meus avós paternos decidem levar-me para Portugal em Outubro de 1977, onde nos juntámos à minha tia Francisca.

Fui descobrindo essa parte do passado por fases, no contacto com alguém mais ou menos próximo, que estivesse na disposição de quebrar o tabu e falar sobre o assunto. Acho que nesse aspeto a minha experiência não é muito diferente daquela vivida pela maior parte dos órfãos desse período. Durante a minha infância contavam-me apenas o indispensável. Particularmente para a minha avó paterna e a minha tia Francisca, duas figuras extraordinárias com um papel central na minha educação, imagino que não tenha sido fácil gerir essa situação. Foi sempre evidente o cuidado que tinham em impedir que fosse exposto a um passado traumático que pudesse condicionar-me negativamente. A partir da minha adolescência, o meu tio João, um irmão mais novo do meu pai, desempenha um papel importante na revelação dos acontecimentos. Tinha estado também ele preso em 1977, tendo sido detido em Cuba e levado para Luanda, onde sobreviveu à chacina. Ele e a minha tia São (outra irmã do meu pai que esteve exilada no Canadá) contavam muitas histórias de Luanda que giravam em torno dos meus pais e do 27 de Maio, e hipnotizavam-nos a nós, sobrinhos, com essas histórias de tal forma que era como se estivéssemos a ver o filme daquele período turbulento. Permaneci em Portugal até aos 18 anos e depois optei por fazer a minha formação universitária em Inglaterra, onde já vivia e trabalhava o meu tio João, como jornalista no serviço de língua portuguesa da BBC.

Regressei a Luanda pela primeira vez em 2005, com 28 anos. Aproveitei umas férias enquanto trabalhava para o Ministério das Finanças em Moçambique e já naquela altura tinha a noção que o meu retorno seria uma questão de tempo. Tinha a consciência que os meus pais se tinham batido com dignidade e determinação pela edificação em Angola de uma sociedade justa, em que a solidariedade pudesse substituir o egoísmo e a exclusão. Entendia que não fazia sentido não lutar pelo mesmo projeto de sociedade na terra onde nasci. Em 2009, depois de uma passagem breve pela Dinamarca para trabalhar em pesquisa no departamento de estudos de desenvolvimento da Universidade de Copenhaga, decidi que não devia protelar mais e que era chegado o momento certo para voltar.

Tenho uma interpretação [do que se passou] que se baseia fundamentalmente nas leituras e nos contactos que fui tendo com sobreviventes e familiares. Não obstante ter opinião formada, isso não impede que não surjam algumas incógnitas em torno dos acontecimentos, onde ainda há muito por esclarecer. Acho que há espaço para historiadores e investigadores aprofundarem a análise dos acontecimentos. Em certa medida, esse trabalho isento já começou a ser feito. Parece-me importante desmistificar a versão criada pelo poder e que procura impor. Cabe aos especialistas trazer alguma luz sobre o 27 de Maio e fazer também a avaliação do papel histórico que a minha mãe, o meu pai mas também muitos outros camaradas seus como Juca Valentim, Nito Alves, Monstro Imortal, Bakalov e tantas outras figuras destacadas tiveram no período da luta pela independência e neste processo do 27 de Maio em particular, com base numa investigação bem documentada e rigorosa. Penso que será indispensável recuar um pouco atrás para se analisar a escalada desumana de repressão que se abateu sobre todas as vitimas do 27 de Maio de 1977.”

Nelson Vieira Lopes

Nelson Vieira Lopes

“A primeira vez que a minha mãe tocou no assunto eu tinha uns oito anos. Passou-me para a mão um panfleto de propaganda politica e disse-me: queres saber o que aconteceu ao teu pai? Foi isto.

Tentei ler e não percebi nada. Só me ficou a palavra fracionista. Mas percebi logo que eram coisas que até para a minha mãe, pessoa forte e pragmática, eram tabu.

Ainda hoje a ideia que tenho é que o meu pai estava no sítio errado, à hora errada, porque toda a gente no hospital foi fuzilada, inclusivamente a mãe do meu irmão mais novo, o Vladimir, que era enfermeira.

Sei que a minha mãe foi ao Moxico, à procura do corpo do meu pai, e encontrou o meu irmão, bebé, lá no meio. Trouxe-o com ela e entregou-o aos avós.

O 27 de maio é para mim uma grande incógnita. Vou apanhando histórias desgarradas. Fui construindo uma ideia a partir de relatos fracionados. Quando as pessoas sabem que sou filho do “Passinhos”, como era conhecido o meu pai, o que me dizem é que era um bom homem, muito inteligente e charmoso, mas não falam muito sobre o que aconteceu. Não tenho memórias do meu pai. As que tenho são das fotografias. Se calhar esta é a altura da minha vida em que estou mais disponível para descobrir quem era e o que se passou.

Para mim foi muito duro. Fui criado pela avó Isabel, uma amiga portuguesa da minha mãe. Foi fantástica, deu-me sempre muito amor. Mas havia para mim uma sensação esquisita porque sabia que tinha família em Angola.

Desde muito pequeno que quase todos os verões passava 15 dias de férias em Luanda, com a minha mãe. E era extremamente desconfortável. Ao mesmo tempo que sabia que aquele era o sítio de onde eu vinha, não sabia muito bem como é que devia comportar-me, porque sentia que as pessoas olhavam para mim mas não me viam a mim, viam ao meu pai.

Por outro lado, o choque com os meus pares era enorme. Eu era um rapaz emocional, mais reflexivo, muito pensativo. Quando tentava conversar eles só falavam em bebida e festa. Das últimas vezes que lá fui senti mais medo de estar em Luanda do que a trabalhar em bairros suburbanos de Lisboa com miúdos com facas e pistolas. Enquanto aqui eu sei até onde as coisas podem ir, em Luanda é outra realidade, é um universo paralelo e alternativo. Há uma corrupção institucionalizada que é surreal. Há uma economia que não funciona sem esse mercado paralelo. E eu tenho dificuldade de desligar dos meus olhos europeus. Tenho dificuldade de desligar dos direitos, das liberdades, dos deveres.

Eu cresci desenquadrado da cultura africana. Costumo dizer na brincadeira que fui branco até aos 12 anos. Só na adolescência é que comecei a questionar-me. E aí sim, ainda para mais sendo rapaz, senti muito a falta do meu pai.

Acho que tirei o curso de Psicologia porque estava estragado. Ainda hoje tenho dificuldade em relacionar-me com Angola. Há um certo ressentimento por eu ter de ficar em Portugal porque o meu país não era acolhedor o suficiente para eu poder estar lá. No fundo, Angola não me roubou só o pai, roubou-me a família toda.

Sinto-me um bocadinho em divida para com as minhas filhas. Porque fui roubado da minha ancestralidade, da minha cultura, e estou a fazer o mesmo. Mesmo que elas vão e não gostem, quero dar-lhes a oportunidade de decidir.

Não vou a Angola há 22 anos. Mas dentro de mim vive sempre aquela vontade, aquela coisa de que tenho de lá ir. Honestamente, acho que preciso de perdoar a Angola. Não é uma pessoa ou as pessoas que executaram o meu pai e que provavelmente já faleceram. O que eu preciso é de deixar de usar essa dor como algo que me limita. Há uma espécie de grito cá dentro a dizer que quer fazer as pazes e ao mesmo tempo uma criança muito assustada e com muito medo de chegar lá e não saber se pertence ou não pertence e de ter de confrontar-se com essa verdade.

Sinto-me diáspora africana. Sinto-me ligado a África. Por isso eu tenho de fazer as pazes com Angola.”