A política pode recuperar a confiança dos eleitores?

Francisco de Almeida Fernandes
Jornalista
Foi exatamente um ano após a Revolução dos Cravos que se realizaram em Portugal as primeiras eleições legislativas em democracia, um ato eleitoral responsável pela formação da Assembleia Constituinte. Nessa primeira chamada às urnas, registou-se uma taxa de abstenção de apenas 8,5%, um valor sem igual nas cinco décadas seguintes. À semelhança do que aconteceu noutros países europeus, os níveis de participação em território nacional têm caído ano após ano — em 1985, 25,7% dos eleitores não votaram nas legislativas, número que subiu para 33,8% dez anos mais tarde. “Começámos a votar num momento muito especial em que estávamos a votar não apenas por diferentes partidos, mas por um regime”, explica Pedro Magalhães, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS).
Apesar do progressivo desinteresse dos cidadãos não ser um fenómeno exclusivamente nosso, “Portugal teve um declínio particularmente acentuado” e, mais relevante ainda, não tem conseguido dar “passos suficientemente significativos” para inverter a tendência. Aliás, nas legislativas de 2019, a abstenção atingiu o máximo histórico de 51,4%. Segundo os estudos, são os jovens quem menos vota, a par dos cidadãos com mais baixos rendimentos, com menor instrução e aqueles que vivem no interior do país. “Uma das coisas que sabemos é que os cidadãos que tendem a votar menos tendem a ser sub-representados nas políticas públicas”, analisa Pedro Magalhães.
A advogada Leonor Caldeira, de 30 anos, considera que um dos fatores que ajuda a explicar o afastamento eleitoral prende-se com a falta de representação, na política, de várias camadas da população. “Enquanto mulher, raramente sinto-me representada só nessa qualidade. Os jovens também não são devidamente representados e já nem vou às minorias étnicas”, lamenta. De facto, se olharmos para a composição da Assembleia da República na última legislatura, em 230 deputados apenas 86 eram do sexo feminino, quase menos 2% do que na composição anterior. Por outro lado, apenas 20 eleitos tinham menos de 35 anos e a grande fatia (152) tinham 45 ou mais anos.
Se é verdade que há menos pessoas a votar nos diferentes tipos de eleições, é também um facto que existe hoje mais participação política por via de protestos, boicotes ou assinatura de petições, aponta o investigador João Cancela: “O único canal que liga as pessoas à política e a expressar reivindicações não são as eleições, há mais formas de o fazer.”
Para Roberto Falanga, especialista em participação cívica no ICS, as instituições democráticas devem olhar para os novos canais de ativismo político e têm de ser capazes de inovar para “captar” as franjas da população eleitoralmente menos ativas. “Há práticas e processos que têm vindo a estimular” esse regresso à vida pública, acredita — desde logo, iniciativas como os orçamentos participativos ou as assembleias de cidadãos nas autarquias. Tudo isto é, assegura o perito, “um meio estratégico para voltar a criar um diálogo com as pessoas mais afastadas do voto”. Para que este trabalho de reconquista da confiança dos eleitores tenha resultados, é preciso “haver um compromisso político” para transformar estas experiências esporádicas “em rotinas” cimentadas.
O problema da abstenção é, no entanto, complexo e multifatorial. Como tal, implica respostas diversas que devem incluir, por exemplo, o aumento da conveniência da participação eleitoral. Atualmente, é possível votar antecipadamente e existe ainda o voto em mobilidade, mas Pedro Magalhães acredita que é importante alargar não só estes métodos, como criar outros complementares. “Há uns anos estive na Noruega poucos dias antes das eleições e a minha surpresa era ver assembleias de voto nas universidades, nos centros comerciais e nos locais de passagem”, exemplifica.
O desperdício de votos é também um desafio democrático, considera Jorge Fernandes. O especialista em ciência política lembra que em vários círculos eleitorais, como Bragança ou Portalegre, a população só consegue eleger dois ou três deputados que são, normalmente, “dominados por PS e PSD”. Significa isto que quem coloque a cruz em qualquer um dos outros partidos não terá representação no Parlamento. A solução, aponta, seria manter o atual sistema eleitoral e complementá-lo com um círculo de eleição nacional. “O que aconteceria é que o eleitor teria dois votos: votaria no seu candidato no distrito, como hoje acontece, e ao mesmo tempo teria possibilidade de votar para um círculo nacional onde todos os eleitores votariam”, explica.
Este tema, lamenta Pedro Magalhães, “é eterno” e não tem existido vontade política em alterar “as regras do jogo” porque “quem tem a capacidade de o mudar tem medo das consequências”. Esta nova fórmula poderia reduzir a dimensão dos dois maiores partidos, PS e PSD, e aumentar a dos restantes candidatos. Certo é que, segundo os peritos, é preciso alterar a relação entre as instituições democráticas e os cidadãos.
Cinco décadas de democracia
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Textos originalmente publicados no Expresso de 22 de dezembro de 2023
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