5 Décadas de Democracia

Nascer e viver na pobreza: será este um destino inevitável?

Nascer e viver na pobreza: será este um destino inevitável?
Francisco Seco

O Expresso e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) juntam-se para debater as últimas cinco décadas de democracia em Portugal. Nos próximos meses, vamos escrever (no Expresso) e falar (na SIC Notícias) sobre 10 tópicos diferentes da sociedade à economia. Em novembro, o foco da análise é a pobreza e as suas múltiplas dimensões

OS FACTOS

Todos os anos, o Instituto Nacional de Estatística promove o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), que na sua última versão disponível, realizado em 2022 com dados de 2021, mostra uma redução dos principais indicadores de pobreza. A taxa de pobreza baixou de 18,4% em 2020 para 16,4% em 2021, o que se traduz em menos 197 mil pessoas nesta situação em Portugal.

Porém, há dados que merecem preocupação. Entre as crianças e jovens até aos 18 anos, 18,5% são pobres, um valor superior ao registado nos adultos (15%) e nos idosos (17%). Por outro lado, o ICOR 2022 aprofunda ainda a análise por tipo de família – sem filhos, monoparental ou numerosa, por exemplo – e permite identificar quais são os agregados familiares com maiores dificuldades financeiras. São as famílias monoparentais aquelas que apresentam maior taxa de pobreza (28%), logo seguidas dos agregados com três ou mais crianças dependentes (22,7%).

Quando o tema é a privação material e social, é relevante considerar que, em 2022, 29,9% da população dizia não ter capacidade para fazer face a uma despesa inesperada (menos do que os 31,1% em 2021) e 17,5% reconhece não ter recursos para manter a casa aquecida (16,4% em 2021).

20%

é a probabilidade estatística que um adulto oriundo de uma família monoparental tem de viver na pobreza. A percentagem sobe para 23% se esse adulto tiver crescido numa família numerosa

Especificamente sobre as crianças, no ano letivo 2021/2022 o número de estudantes abrangidos por ação social escolar ultrapassou a barreira dos 370 mil, o valor mais elevado desde 2017. Em quase 991 mil alunos matriculados naquele ano, 37,4% faziam parte deste universo.

COMO CHEGÁMOS AQUI

O primeiro ponto prévio que o sociólogo Fernando Diogo faz questão de fazer, durante a conversa com o Expresso, é que “não há muitos estudos” sobre a transmissão intergeracional da pobreza em Portugal. O termo é longo, mas resume-se em poucas palavras: as crianças que nascem em famílias pobres têm maior probabilidade de vir a sofrer fragilidade económica quando forem adultas. “Existe, de facto, alguma falta de informação a esse nível, em Portugal e, de forma geral, na Europa”, insiste o professor na Universidade dos Açores e investigador no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais.

A primeira conclusão do especialista, que se tem dedicado a estudar esta problemática, é que “a taxa de pobreza infantil está, desde que existe o ICOR, sempre acima da taxa média”. Uma vez que as crianças não são autónomas e capazes de gerar rendimento por via do trabalho, não têm capacidade para sair de uma situação de pobreza e isto deve, na opinião de Fernando Diogo, preocupar a sociedade. “Vivemos num país que tem um número muito baixo de crianças, mas as poucas que existem têm uma taxa de pobreza bastante acima da média nacional”, lamenta.

“O problema não está na sua identificação [das medidas necessárias para contrariar a pobreza], mas antes na capacidade de efetivamente as implementar”, afiança Carlos Farinha Rodrigues

A perspetiva é partilhada por Carlos Farinha Rodrigues, economista e professor no ISEG, que considera esta realidade “o sintoma mais evidente do carácter estrutural da pobreza em Portugal”, que “levanta mais preocupações e que requer medidas mais urgentes para a sua eliminação”. Não é caso para menos, se atentarmos aos dados refletidos no estudo “Portugal e o Elevador Social: Nascer pobre é uma fatalidade?”, da Nova School of Business and Economics, que mostra que uma em cada quatro pessoas que, aos 14 anos, vivia num agregado com má situação financeira é pobre.

O documento evidencia ainda que os adultos cujas famílias, quando estes tinham 14 anos, não conseguiam assegurar uma refeição proteica diária, têm hoje uma taxa de pobreza de 22%. Entre os adultos que tinham acesso a essa mesma refeição diária, o valor desce para 10%. Os autores – Susana Peralta, Bruno P. Carvalho e Miguel Fonseca – dizem mesmo que “uma comparação entre as gerações nascidas nas décadas de 60, 70 e 80 sugere que a transmissão intergeracional de pobreza não está a diminuir”.

120.000

é o número de crianças que beneficiará, em 2024, da gratuitidade das creches em Portugal, de acordo com o previsto na primeira fase da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza

“Os estudos mostram que quanto mais cedo for a integração das crianças neste sistema paraescolar, melhores serão os seus resultados na escola e, por consequência, melhores as suas oportunidades de trabalho”, assinala Fernando Diogo

A realidade dos dados não deixa espaço para outra conclusão que não seja a do investigador Fernando Diogo: “o facto de uma pessoa ter uma infância pobre é um grande preditor de ter uma vida adulta pobre”. Para o perito, há duas razões que ajudam a explicar os números. Por um lado, os fatores micro sociais relacionados com as crianças e as suas famílias e, por outro, os fatores estruturais que estão ligados à organização do Estado e da economia.

PARA ONDE CAMINHAMOS

Agir perante este desafio social é tarefa árdua, reconhecem os peritos ouvidos pelo Expresso, mas não é impossível. Fernando Diogo sublinha uma das medidas previstas na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, o aumento de acesso das crianças à creche e ao pré-escolar, como uma das principais estratégias para inverter a tendência. “Os estudos que têm sido feitos a nível internacional mostram que quanto mais cedo for a integração das crianças neste sistema paraescolar, melhores serão os seus resultados na escola e, por consequência, melhores as suas oportunidades de trabalho”, assinala.

Para procurar endereçar este problema, o Governo criou, em 2022, o programa Creche Feliz que estabelece que todas as crianças nascidas depois de 1 de setembro de 2021 têm direito a frequentar estes espaços de forma gratuita. Já aquelas cuja data de nascimento for anterior a essa data, apenas poderão ter acesso gratuito se forem abrangidas pelo primeiro ou segundo escalão de rendimentos. A proposta de Orçamento do Estado para 2024, cuja aprovação pode estar em risco depois da demissão do primeiro-ministro, prevê o alargamento das vagas gratuitas a todas as crianças até aos três anos. Segundo o executivo, serão abrangidas mais 120 mil crianças e alocados mais €100 milhões a este programa no próximo ano – em setembro, no último balanço oficial, existiam 85 mil vagas disponíveis.

Carlos Farinha Rodrigues acrescenta outras iniciativas do Estado que podem ajudar a quebrar a transmissão intergeracional de pobreza. Entre elas, garantir “níveis básicos de alimentação a todas as crianças” inseridas em famílias com dificuldades financeiras, assim como assegurar o acesso a “consultas de rotina através de serviços médicos de proximidade, incluindo saúde oral e cuidados de saúde mental”. Em simultâneo, afirmam os dois investigadores, deve ser dado todo o apoio financeiro às famílias mais pobres e ser trabalhado o modelo económico nacional, que deve priorizar a criação de riqueza para fazer subir salários e melhorar as condições financeiras da população. “O problema não está na sua identificação [das medidas necessárias para contrariar a pobreza], mas antes na capacidade de efetivamente as implementar”, remata o professor do ISEG.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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