Terapia com células só resulta com a precisão da F1
Quando a quimioterapia é insuficiente, novas abordagens terapêuticas podem ser solução para doentes oncológicos
José Fonseca Fernandes
Inovação. Peritos entregaram recomendações na AR para melhorar acesso aos tratamentos celulares. Apoio a cuidadores, revisão do financiamento e criação de uma comissão técnica são cruciais num processo que tem de ser quase perfeito
Tal como na Fórmula 1, na saúde também é preciso garantir reflexos instantâneos e a precisão de um relógio suíço. “A terapia à base de células CAR-T é como uma equipa de mudança de pneus: tudo tem de estar articulado para que o tratamento resulte”, aponta o investigador Henrique Lopes. O diretor do NOVA Center for Global Health (NCGH), da NOVA Information Management School (NOVA IMS), serve-se da analogia para se referir à complexidade da aplicação prática das células CAR-T em doentes oncológicos fragilizados e sem outras opções terapêuticas.
Disponível em Portugal desde 2019, esta solução já tratou cerca de 200 doentes com cancros do sangue, mas enfrenta ainda desafios que dificultam o acesso. “Os doentes candidatos têm doença agressiva e ativamente a crescer. As decisões têm de ser boas, mas também rápidas”, explica a hematologista Maria Gomes da Silva. No IPO Lisboa, onde trabalha, foram tratados cerca de 20 doentes em 2024, número que será largamente superado este ano. “Estamos a tratar cerca de um doente por semana”, confirma.
Além do IPO Lisboa, há mais três centros de referência no país que estão a usar as terapias celulares como forma de combater cancros agressivos e cujas probabilidades de cura, sem esta inovação, rondam os 10%. “Cerca de 40% dos doentes ficam curados”, sublinha Henrique Lopes, que vê o impacto das terapias celulares como semelhante ao surgimento da “radiologia e quimioterapia”.
Cavalo de Troia nas veias
O primeiro caso de sucesso das terapias celulares tem cerca de 15 anos, mas só recentemente chegaram a doentes com linfomas e leucemias. “Existem muitas outras situações oncológicas, autoimunes e até infecciosas que já estão a ser testadas”, assinala Henrique Lopes, que diz terem sido tratadas 34 mil pessoas à escala mundial.
Mas como funciona? O processo divide-se em várias etapas complexas, exigentes e necessariamente coordenadas ao milímetro. Primeiro, recolhem-se as células T do sangue do doente, que são enviadas para um laboratório especializado (neste momento inexistente em Portugal) onde são geneticamente modificadas. “É uma tecnologia que nos permite ‘educar’ células específicas da imunidade para fazerem o que queremos”, detalha Fernando Leal da Costa, ex-ministro da Saúde e um dos membros do projeto SHARP, think tank que elaborou recomendações sobre o tema.
Depois, este exército de células, tal como um cavalo de Troia, volta ao corpo do doente para destruir as células cancerígenas. O objetivo é que se multipliquem e consigam atingir o seu alvo, mas há riscos que exigem monitorização permanente. Durante 30 dias o doente tem de estar a menos de 30 minutos do centro de referência e ser acompanhado por um cuidador formado e disponível em exclusividade. Este, dizem os especialistas, é um dos maiores desafios.
O projeto SHARP, liderado pelo NCGH, reuniu ao longo de oito meses um grupo de peritos em saúde para debater os principais obstáculos à generalização destas terapias. Esta semana, o relatório final com as principais recomendações foi apresentado na Assembleia da República, onde estiveram deputados dos três principais partidos.
Uma das prioridades é criar uma rede de suporte para doentes e cuidadores, assegurando que ninguém é excluído por falta de acompanhante ou por dificuldades financeiras que impeçam a deslocação por 30 dias. “Não existe nenhuma resposta estruturada para este cenário”, aponta Laura Moura, do NCGH. Embora associações como a Acreditar ou a APCL ofereçam apoio, não é, consideram os peritos, suficiente.
Outro desafio é a uniformização dos critérios de seleção. Maria Gomes da Silva concorda com a sugestão do projeto SHARP para a criação de uma comissão técnica de avaliação que centralize as decisões. “Foi o modelo aplicado em Inglaterra, nos Países Baixos e em Espanha.”
Para lá de recomendações ligadas à aposta em mais investigação e geração de evidência científica “made in Portugal”, os especialistas defendem a revisão do modelo de financiamento. O custo, por ser uma inovação recente, é ainda elevado, mas não pode “determinar decisões clínicas”. Maria Gomes da Silva assegura não conhecer “nenhum doente a quem tenha sido negado tratamento por limitação financeira”, mas garante que “rever o modelo é importante”.
Como na Fórmula 1, onde um pit stop de dois segundos pode decidir a corrida a mais de 300 quilómetros à hora, também nas terapias celulares a velocidade, a precisão e a coordenação são cruciais. A inovação está criada, mas falta garantir que o sistema de saúde funciona como uma equipa bem treinada, com decisões rápidas e movimentos sincronizados. Neste circuito, o tempo pode ser a diferença entre prolongar a vida ou perder a corrida.