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Mito da imortalidade pode custar a vida aos homens

Até os super-heróis precisam de ajuda. A ideia de que os “homens não choram” continua a atrasar diagnósticos, a comprometer tratamentos e qualidade de vida
Até os super-heróis precisam de ajuda. A ideia de que os “homens não choram” continua a atrasar diagnósticos, a comprometer tratamentos e qualidade de vida
Alamy Stock Photo/Fotobanco.pt

Estudo. “A postura de super-homem” não ajuda. Há pessoas que escondem a doença, os tratamentos chegam tarde e até quem tenha de abandonar o emprego. Efeitos, por vezes silenciosos, que podem ser evitados com diagnóstico precoce

O silêncio ainda pesa demasiado na saú­de dos homens, com consequências para os próprios, mas também para a sociedade e para as contas do sistema de saúde. Se a primeira parte do estudo “A Saúde do Homem”, da GfK Metris para o Expresso, mostrava que sobretudo os homens evitam os cuidados de saúde até ao limite, a segunda parte, centrada nas principais doenças que os afetam, revela o que acontece quando o diagnóstico chega. Cancro do pulmão, da próstata, VIH/sida e psoríase/artrite psoriática são as principais patologias identificadas.

De acordo com os resultados, falar das maleitas que os afetam continua a ser um tabu para muitos doentes — em particular quando se trata de infeção por VIH. “É a condição mais associada ao estigma: 40% dos doen­tes relatam ter sido vítimas de discriminação e a maioria (60%) não se sente confortável em partilhar o diagnóstico”, aponta o documento.

Para Maria Eugénia Saraiva os dados não são surpreendentes e demonstram as dinâmicas de género e o “peso” dos fatores culturais. A presidente da Liga Portuguesa Contra a SIDA lembra que é habitual dizer-se que “os homens não choram” e que, “desde cedo, são ensinados a não expressarem as suas emoções”. Para lá do peso emocional da discriminação, o estigma funciona como um dos principais inimigos do diagnóstico atempado, que pode, com a evolução da medicina e dos fármacos, evitar a evolução para sida e salvar vidas.

“Os homens protelam a ida ao médico por vários fatores”, nomeadamente pela ideia, ainda que inconscien­te, de serem “imortais, que nada os atinge”, e que resulta muitas vezes na adoção de “uma postura de super-homem”. “Quando nos chegam, muitas das vezes já vêm com um diagnóstico tardio”, lamenta. E se esta é uma realidade no VIH, no cancro da próstata não é diferente, aponta José Graça, da Plataforma Saúde em Diálogo, que sublinha que “há estigma” também nesta doença.

Quanto ao acesso, a maioria dos inquiridos diz ter recorrido ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas nem sempre sem obstáculos. As longas listas de espera são apontadas como principal entrave e os seguros de saúde, que se estima abrangerem cerca de cinco milhões de portugueses, não chegam para tudo. “54% dos doentes com cancro que têm seguro consideram que a cobertura não é suficiente”, conclui o relatório da Gfk.

Consulte o estudo completo AQUI

As doenças oncológicas — em particular do pulmão e da próstata — estão, de acordo com os dados, entre as patologias com maior impacto na vida pessoal e profissional dos doentes e cuidadores. Para estes últimos, 33% tiveram de abandonar o emprego para cuidar de familiares com cancro da próstata, uma percentagem que sobe para 40% no do pulmão. Além da prevenção, o diagnóstico precoce é crucial para aumentar as probabilidades de sobrevivência e a manutenção da qualidade de vida, uma área a que o Governo garante estar atento (ver texto abaixo). “Os atrasos no diagnóstico, que os números nos dizem continuarem a ser particularmente frequentes entre os homens, têm um impacto muito significativo na eficácia dos tratamentos”, alerta a cientista Maria Manuel Mota.

Enquanto as doenças oncológicas e o VIH/sida são maioritariamente detetados através de exames de rotina, a psoríase/artrite psoriática é sobretudo identificada pelos doentes através de sintomas visíveis (81%). Ainda assim, revelam os números, 31% destes doentes só receberam o diagnóstico mais de um ano após os primeiros sinais.

No campo dos tratamentos, a maioria dos doentes segue planos terapêuticos prolongados, com mais de três anos e elevada adesão: entre 80% e 100% cumprem o que lhes é prescrito. Ainda assim há desafios. “O custo elevado é o principal fator que impede o acesso a tratamentos inovadores”, lê-se, com os doentes com cancro do pulmão e psoríase a sentirem mais barreiras. As novas abordagens terapêuticas, como as biológicas, que estão a revolucionar o tratamento da psoríase, ou os antivirais, que impedem a transmissão do VIH, devem servir também de incentivo ao diagnóstico precoce. Só assim, com tempo, é possível manter a qualidade de vida dos doentes.

NÚMEROS

50%

dos doentes com cancro do 
pulmão abandonaram o emprego. 40% relatam que um familiar 
deixou o trabalho para os apoiar


80%

das pessoas que vivem com 
doença consideram que 
têm acesso ao melhor tratamento disponível atualmente


€50

milhões é o valor médio investido todos os anos pelo Serviço Nacional de Saúde na realização 
de rastreios, segundo a 
secretária de Estado da Saúde


Falhas na saúde masculina motivam medidas concretas

Estudo está a gerar ampla reflexão entre especialistas e decisores, que destacam a importância da prevenção

Na apresentação de “A Saúde do Homem”, Filipa Mota e Costa, da Johnson & Johnson Innovative Medicine, sublinhou: “É um estudo muito importante, porque tudo o que contribua para melhor literacia e cuidado consigo próprio é preditor de melhores resultados em saúde.” Ana Povo, secretária de Estado da Saúde, reconheceu: “Este tipo de estudos evidencia uma realidade conhecida: os homens procuram menos cuidados e fazem-no tardiamente.” A governante anunciou projetos-piloto para rastreio do cancro do pulmão e o estudo do alargamento ao da próstata, além de mais testes rápidos para o VIH e outras doenças sexualmente transmissíveis. José Graça, da Plataforma Saúde em Diálogo, alertou: “57% das pessoas vão primeiro ao centro de saúde. Com médicos suficientes, evitam-se despesas desnecessárias com idas ao privado.” Para Sónia Dias, da Escola Nacional de Saúde Pública, os dados “permitem formar políticas públicas e definir áreas prioritárias”. Luís Cunha Miranda, da Ordem dos Médicos, defendeu um plano estratégico para 20 anos, e Eduardo Netto, do Programa Nacional de Doenças Oncológicas, concluiu: “A estratégia segue boas práticas europeias, mas há muito por fazer até 2030.” Rui Baioneta

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