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Marta Temido: “Não é aceitável aguardar anos por uma consulta de especialidade ou por uma cirurgia”

Marta Temido, atual eurodeputada pelo Partido Socialista, foi a ministra da Saúde durante a pandemia da Covid-19.
Marta Temido, atual eurodeputada pelo Partido Socialista, foi a ministra da Saúde durante a pandemia da Covid-19.
ANDRÉ KOSTERS (Agência Lusa)

A antiga ministra da Saúde reflete sobre os dados mais recentes, a perceção de acessibilidade e os desafios de um sistema em constante pressão. E tem muitas perguntas. Esta é a sétima de dez minientrevistas relacionadas com o estudo da GfK Metris para o Expresso sobre “A Saúde do Homem”

86% dos portugueses tem médico de família, mas não recorre de forma frequente ao mesmo. Estarão os tempos de espera (49%) ou as dificuldades no contacto telefónico com os centros de saúde (36%) a afastar os utentes do SNS?

Conhecer as preferências dos utentes relativamente à prestação de serviços de saúde pelo SNS é essencial para melhorar a resposta às suas expectativas de utilização. Por isso, estes números são importantes, mas não podemos extrair deles senão perguntas. E, aliás, fazer ainda outras perguntas. Qual a caracterização desta população que, tendo médico de família atribuído, não o utiliza? São utentes mais velhos e com maior carga de doença ou jovens sem risco específico? São utentes que acedem apenas na doença aguda, vacinação e rastreios ou que acedem seguindo planos de promoção da saúde? São utentes de que estratos socioeconómicos e de que outras coberturas de saúde beneficiam (por exemplo, estão seguidos laboralmente por serviços de saúde ocupacional)? São utentes inscritos em Unidades de Saúde Familiar ou em Centro de Saúde?

Quero sublinhar um aspeto que o estudo mostra. Um total de 66% dos inquiridos recorre ao médico de família de 6 em 6 meses ou 1 vez por ano – o que sugere um acompanhamento ótimo do ponto de vista clínico.

Finalmente, regressando às hipóteses da questão, quero insistir na importância de saber mais sobre as preferências dos utentes: que instrumentos para facilitar o contacto e proximidade dos utentes com o SNS? O contacto telefónico ainda é o meio preferencial? O investimento que foi feito em 2020/2021 na melhoria da infraestrutura telefónica e tecnológica dos cuidados de saúde primários teve continuação? O regime de dedicação plena, com incentivo ao alargamento dos períodos de consulta ao final do dia e aos sábados de manhã, para criar melhores respostas, foi eficaz?

Com apenas 5% a considerar 'extremamente fácil' o acesso aos hospitais públicos e 7% aos centros de saúde — e com a maioria a classificá-lo como apenas 'moderado' (16%) — há, ou não, um problema de acessibilidade no SNS?

Os constrangimentos de acesso ao SNS existem mas, neste caso, mais do que as perceções, sempre subjetivas, são os relatórios sobre o acesso que os medem - inexplicavelmente, o último relatório sobre acesso ao SNS data de 2021. Em qualquer caso, o estudo realizado também mostra que 66% dos respondentes percecionam facilidade de acesso aos centros de saúde e 61% facilidade de acesso aos hospitais.

Vale a pena recordar que o sistema público tem grande capilaridade de pontos de prestação e diversidade de serviços prestados. O elevado volume de cuidados anualmente realizados pelo SNS traduz acesso ao sistema. Mas mais do que volume e tempos de espera de consultas, exames e cirurgias, importará perceber como são os resultados em saúde, os ganhos para a população. Naturalmente, é muito mais fácil medir volume e tempos de espera do que necessidades efetivas e ganhos em saúde.

A maioria dos portugueses diz recorrer aos hospitais públicos em vez de privados (80% vs 57%), mas vai mais vezes aos privados (média de 4 vezes/ano vs. 3). O que explica este aparente paradoxo entre preferência e comportamento?

Na verdade, mais do que um paradoxo, parece-me um indício do tipo de cuidados usados e do padrão de funcionamento dos sectores.

Mas, também neste caso, quero evitar leituras simplistas de fenómenos complexos. Qual a gravidade/complexidade da situação de saúde que leva os utentes a dirigir-se a um ou outro tipo de hospital? A perceção generalizada é que os hospitais do SNS são escolhidos quando se tem um problema de saúde grave e/ou complexo (até porque não se colocam questões de exclusão de atos ou limites financeiros), mas que não respondem, em tempo considerado adequado, à necessidade de uma consulta de especialidade para uma situação não emergente ou urgente. Não estou a dizer que as situações não exigem todas resposta no tempo clinicamente aceitável: imagine-se uma dor de costas ou na anca incapacitante, não é aceitável aguardar anos por uma consulta de especialidade ou por uma cirurgia.

No entanto, penso que esta também já é uma questão no acesso a consultas de especialidades no sector privado e social, ainda que, eventualmente, em menor escala. Porém, como desconhecemos os seus tempos de espera e o seu perfil assistencial é mais difícil perceber o fenómeno.

Enquanto não mitigarmos a crise da força de trabalho em saúde, dramática em toda a Europa e que se intensificará sem ações específicas, será impossível responder a um contexto de necessidades assistenciais e expectativas crescentes de uma população mais envelhecida e informada. Por isso, no Parlamento Europeu, estou presentemente envolvida num relatório de iniciativa sobre este tema.

Nome: Marta Temido

Idade: 51 anos

Profissão: Administradora hospitalar

Resumo profissional: Foi Ministra da Saúde entre 2018 e 2022, tendo assumido um papel central na gestão da pandemia de Covid-19. Presidiu à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Atualmente, é deputada no Parlamento Europeu pelo Partido Socialista.

Lema de vida: “Não há problemas sem solução”

“A Saúde do Homem” é uma iniciativa que visa retratar os cuidados de saúde da população masculina e sensibilizar a sociedade para a importância da prevenção e do tratamento de doenças que a afetam. Um projeto Expresso, com o apoio da Johnson & Johnson Innovative Medicine e o apoio institucional da Ordem dos Médicos.

Este projeto é apoiado por patrocinadores, sendo todo o conteúdo criado, editado e produzido pelo Expresso (ver Código de Conduta), sem interferência externa

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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