Perspetivas. Profissionais ligados à investigação científica, à prestação de cuidados e à política traçam cinco caminhos diferentes com o mesmo destino: um país com saúde de qualidade. Trazer o SNS para o século XXI é crucial
Fundamental ou aplicada são duas faces da mesma moeda: a da investigação científica. Classificar uma como mais importante do que a outra seria desadequado e desviaria as atenções do que importa: os resultados em saúde que daí derivam. “Se os países com indicadores de maior prosperidade social são os que mais apoiam a ciência, isso não é, infelizmente, o que verificamos em Portugal”, afirmou Jorge Soares, especialista em anatomia patológica, na cerimónia do Programa Gilead Génese, que entregou, este mês, bolsas de investigação no valor de €300 mil.
Depois de termos ouvido, em janeiro, cinco personalidades ligadas à saúde sobre os principais desafios do sector, é tempo de dar voz a outros cinco peritos. Graça Freitas (IPO Lisboa), Fernando Maltez (Hospital Curry Cabral), Maria Carmo-Fonseca (GIMM), Maria de Belém Roseira (ex-ministra da Saúde) e André Albergaria (Biovance Capital) traçam cinco caminhos para melhorar a prestação de cuidados.
Viver mais, mas com qualidade
A esperança média de vida na União Europeia ultrapassa os 85 anos. Aquilo que seria uma boa notícia, pode revelar-se um desafio: “Mais de metade desses anos são vividos com doenças crónicas e incapacidades”, aponta o relatório “Health at a Glance 2024”. Para Graça Freitas, antiga líder da Direção-Geral da Saúde (DGS), esta realidade é, simultaneamente, “uma conquista e um problema. Haverá questões genéticas que ajudarão à longevidade e alguma resiliência em relação à morbilidade, mas há muitas questões que têm a ver com determinantes ambientais e comportamentais dos nossos estilos de vida”.
A solução, acredita, passa por “observar, estudar e perceber” o que estão a fazer outros países com melhores indicadores de qualidade de vida depois dos 65 anos. Graça Freitas formou-se em Medicina em 1980 e acompanhou, ao longo dos últimos 45 anos, o desenvolvimento do SNS que trouxe “imenso progresso” ao país. Porém, não hesita em dizer que o sistema precisa “de sofrer transformações”, mantendo “intactos” os princípios que o norteiam: “tem de ser justo no acesso à prestação de cuidados com qualidade e com segurança”.
Regresso aos básicos
Fernando Maltez, diretor de Infecciologia no Hospital Curry Cabral, partilha as preocupações da antiga diretora da DGS e fala mesmo num “esgotamento” do SNS que importa reverter a breve trecho. Evitar a desumanização na prestação de cuidados implica que o Estado seja capaz de garantir os ingredientes básicos: profissionais de saúde em quantidade suficiente e condições técnicas adequadas. “Este último ano foi muito assustador por um conjunto de coisas que aconteceram nas urgências de pediatria e de obstetrícia”, recorda. O médico e especialista em VIH diz, porém, que esta é apenas a “ponta do icebergue” e que os problemas são transversais a todas as especialidades. “Temos de criar condições para ‘agarrar’ estas novas gerações de clínicos. Caso contrário, vão afastar-se do SNS.”
Conhecer para melhor prevenir
Distinguida com o Prémio Pessoa 2010, Maria Carmo-Fonseca defende que se devem investir mais recursos na prevenção e no conhecimento dos efeitos que a atividade humana tem no aumento da incidência de várias doenças. “Continuamos demasiado focados em tratar, enquanto negligenciamos o conhecimento científico que nos indica como evitar muitas doenças”, lamenta. Para a investigadora do GIMM, há que garantir apoio estável à investigação científica que é, acredita, o “motor de desenvolvimento das sociedades”.
Peritos querem uma saúde mais tecnológica, focada na prevenção e apostada em manter a qualidade de vida
Claudio Sunkel, diretor do i3S, acrescenta que as políticas na área da ciência devem ser “mantidas durante algum tempo e sem grandes alterações” para que seja possível explorar o potencial científico nacional, mas também para que se reflita em “melhores diagnósticos”.
Modernizar o SNS
Para lá do reforço de recursos humanos e das condições oferecidas aos profissionais de saúde, Maria de Belém Roseira defende um investimento sério na transformação digital do SNS. E não é por acaso. “É importante ao nível dos processos, da racionalidade da gestão e importantíssima para ajudar na segurança dos diagnósticos. A transformação digital é indispensável”, assegura.
Contudo, “domar a máquina da saúde” implica, para a ex-ministra, uma maior colaboração entre os sectores público, privado e social, mas também entre as diferentes instituições. O objetivo final deve ser “recuperar uma lógica de prevenção e saúde”, enquanto se procura garantir um acompanhamento dos cidadãos ao longo da vida — em particular, na velhice quando há mais comorbilidades.
Um sistema mais próximo
André Albergaria está de acordo com os desafios e caminhos mencionados, mas acrescenta o que considera ser o mais importante: “A reposição da confiança do cidadão-utente no SNS”. Para o investigador que também apoia, através da Biovance Capital, startups inovadoras, acredita que a solução deve passar pela “redução das assimetrias” no acesso aos serviços de saúde e pelo aumento das respostas de proximidade. Ferramentas como a telemedicina e as teleconsultas podem, e devem, ser usadas para diminuir as desigualdades no país, sugere.
Em matéria de ciência, Albergaria afirma ser preciso uma estratégia de longo prazo, assim com mecanismos de financiamento estáveis para a produção de conhecimento. As vantagens, diz, passam pelo fortalecimento de “uma economia de saúde mais vibrante, mais eficiente e que responde às necessidades dos doentes”.
O Desafio de Graça Freitas
Provedora do Utente no IPO de Lisboa
Aumentar a qualidade de vida depois dos 65 anos
68,8%
é o nível de dependência de idosos que o Eurostat estima que Portugal atinja até 2050, o mais alto da UE
O Desafio de Fernando Maltez
Diretor de Doenças Infecciosas do Hospital Curry Cabral
Responder à elevada procura de cuidados de saúde
1,5
milhões é o número de portugueses que continuam sem acesso a médico de família, o mesmo valor desde março de 2024
O Desafio de MARIA CARMO-FONSECA
Investigadora do GIMM
Estudar efeitos da atividade humana nas doenças
238.000
foi o número de europeus que morreram, em 2020, pela exposição prolongada a partículas finas na atmosfera
O Desafio de Maria de Belém Roseira
Ex-ministra da Saúde
Acelerar a transformação digital na saúde
€300
milhões é o montante inscrito no Plano de Recuperação e Resiliência para financiar a transição digital neste sector
O Desafio de André Albergaria
Investigador na Biovance Capital
Recuperar a confiança dos cidadãos no SNS
17,3%
foi o aumento, em 2024, do número de seguros de saúde subscritos pelos portugueses, segundo dados da ASF