“40% dos doentes tratados com CAR-T ficam curados”
TIAGO MIRANDA
Em entrevista, Manuel M. Abecasis, presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia, destaca a revolução trazida pela nova abordagem terapêutica que permite tratar doentes cujas hipóteses de cura eram, até há pouco tempo, reduzidas. O perito integra o grupo de especialistas do Projeto SHARP, do NOVA Center for Global Health - com o apoio da Kite, uma empresa da Gilead - e que tem o Expresso como media partner
Uma revolução. É assim que Manuel M. Abecasis, antigo diretor do departamento de hematologia do IPO Lisboa, olha para a terapia à base de células CAR-T no tratamento de cancros de sangue. “As células CAR-T representam uma abordagem revolucionária para toda a oncologia”, acredita, lembrando que a tecnologia promete aplicações para lá de doenças oncológicas como os linfomas.
Atualmente reformado e presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia, o perito integra o grupo de especialistas do Projeto SHARP, do NOVA Center for Global Health com o apoio da Kite, uma empresa da Gilead. O Expresso é media partner e vai divulgar, no primeiro trimestre de 2025, o relatório final com recomendações para a generalização desta terapia em Portugal.
Entre médicos, administradores hospitalares, decisores na área da saúde e representantes de doentes, o grupo de reflexão reúne-se em três sessões de debate até janeiro. A segunda reunião foi dedicada ao tema da jornada do doente e dos desafios que estes sentem no acesso ao tratamento, e é também o mote para a entrevista com Manuel M. Abecasis.
Como antigo diretor de hematologia do IPO Lisboa e atual presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL), que papel procura ter neste grupo de reflexão sobre a terapia à base de células CAR-T?
Sempre me interessei por esta área, especialmente por ser uma abordagem revolucionária em oncologia. As células CAR-T representam uma imunoterapia de vanguarda que permite reativar o sistema imunitário para combater cancros do sangue, como linfomas. Essas células são manipuladas em laboratório para reconhecer e atacar as células malignas, tornando visíveis o que antes era "invisível" ao sistema imunitário.
Essa terapia baseia-se em avanços das últimas décadas, permitindo identificar mecanismos pelos quais os tumores escapam ao sistema imunitário e revertê-los. É particularmente eficaz em linfomas de células B, mas novas investigações indicam potencial em outros tipos de cancro. Como presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia, tenho trabalhado para promover o acesso a esta abordagem inovadora, que beneficia significativamente os pacientes.
“Há que disseminar a informação junto dos serviços de hematologia dos vários hospitais do país que tratam doentes que podem beneficiar deste tipo de tratamento”
Que impacto traz esta nova abordagem?
A terapia CAR-T junta-se à cirurgia, radioterapia e quimioterapia como um quarto pilar no combate ao cancro. Estudos mostram que pode substituir o transplante de medula em alguns casos, com resultados superiores. Além disso, permite tratar pacientes que antes não seriam elegíveis, como idosos até 80 anos, ampliando consideravelmente as opções terapêuticas.
Nos últimos cinco anos, foram beneficiados mais de 150 doentes em Portugal. Que desafios encontra na generalização desta terapia?
Embora disponível em Portugal há cinco anos, o acesso à terapia CAR-T ainda é limitado devido ao elevado custo, entre €250 mil e €300 mil por tratamento completo [medicamentos, custos operacionais e outros]. Apesar disso, é uma intervenção única, que, a longo prazo, pode ser mais económica quando comparada a múltiplos tratamentos alternativos. O financiamento segue um modelo de partilha de risco: a indústria farmacêutica recebe parte do pagamento apenas se o tratamento for bem-sucedido. Julgo que este é o modelo certo e também é seguido noutros países.
A criação de linhas de financiamento dedicadas poderia reduzir desigualdades entre hospitais e facilitar o acesso a mais pacientes. Além disso, a implementação de um registo nacional de resultados ajudaria a monitorizar a eficácia e otimizar o uso deste recurso. Aliás, estas linhas de financiamento já existem para as doenças raras, por exemplo.
Os profissionais de saúde estão a par desta possibilidade? Esta opção já é sugerida pelos médicos?
Há que disseminar a informação junto dos serviços de hematologia dos vários hospitais do país que tratam doentes que podem beneficiar deste tipo de tratamento. É preciso conversar e essas conversas têm sido feitas através de conferências e encontros e seminários, de forma a fazer chegar este conhecimento aos médicos
Como é que funciona, em termos práticos, esta terapia?
As células T do próprio paciente são colhidas e modificadas em laboratório para expressar um recetor capaz de identificar as células malignas. Essas células são depois reintroduzidas no corpo, onde se multiplicam e atacam o tumor. No entanto, o processo pode gerar complicações inflamatórias e neurológicas nos primeiros dias, que, embora reversíveis, exigem monitorização cuidadosa.
Esta jornada do doente e da equipa médica que o acompanha passa pela consciencialização da disponibilidade desta estratégia terapêutica e de que o doente deve ser referido atempadamente. O doente não deve ser referenciado como uma solução de fim de linha, porque aí o benefício é mais reduzido.
Manuel M. Abecasis, já reformado, preside à Associação Portuguesa Contra a Leucemia por acreditar que é importante dar voz aos doentes
TIAGO MIRANDA
"Antes da existência das CAR-T, a probabilidade de cura destes doentes andava à volta dos 10%, 20% no máximo"
Como é que este processo se traduz para o doente?
Durante o primeiro mês, é crucial que o paciente esteja a uma hora de um centro de tratamento e conte com o apoio de um cuidador treinado para identificar sinais precoces de complicações. Isto pode ser um desafio logístico para famílias e pacientes de áreas mais distantes.
A grande vantagem desta terapia prende-se com a eficácia para doentes cujas probabilidades de cura, por outra via, são mais reduzidas. Que impacto é que tem esta abordagem?
Hoje, que já temos muita experiência acumulada, sabe-se que 40% dos doentes que fazem tratamento com CAR-T ficam efetivamente curados. O que é bastante bom porque eram doentes que antes da existência das CAR-T a sua probabilidade de cura andava à volta dos 10%, 20% no máximo. Portanto, eram doentes que estavam com prognóstico muito reservado.
Quais são os requisitos clínicos para que um doente possa aceder a este tratamento?
Já há indicação para que as células CAR-T sejam consideradas como alternativa ao autotransplante, que era a estratégia mais seguida. Isto é, já há uma evolução da aprovação inicial, tanto na América como na Europa, em que as CAR-T apareciam apenas como terceira linha terapêutica. No entanto, demonstraram que podem ser consideradas como uma alternativa ao autotransplante, com resultados iguais, senão mesmo superiores.
Há ainda algo bastante importante e que faz a diferença, por exemplo, em relação ao autotransplante. Enquanto um doente para ser candidato a autotransplante não deve, em geral, ter uma idade superior a 65 anos e, em alguns casos, 70 anos, as CAR-T são aplicáveis em doentes até com 80 anos. Isto abre muito o leque de doentes elegíveis.
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