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“Antes levava cinco ou seis litros de líquido nas veias”

Ricardo Ferreira foi um dos primeiros doentes a beneficiar da terapia inovadora no IPO do Porto, em 2020
Ricardo Ferreira foi um dos primeiros doentes a beneficiar da terapia inovadora no IPO do Porto, em 2020

Inovação. Ana e Ricardo são dois dos mais de 150 doentes em Portugal que já tiveram acesso ao tratamento oncológico com células CAR-T. Sistema imunitário é instruído para atacar os agentes malignos nos cancros do sangue agressivos

“Estava francamente cansada”, conta Ana Corista, que recorda o percurso de vários anos desde que foi diagnosticada, em 2016, com um linfoma folicular. Depois de uma primeira paragem num hospital privado, acabou encaminhada para o IPO de Lisboa, onde enfrentou dois anos de quimioterapia. “A minha médica propôs-me, na Páscoa do ano passado, participar numa terapia inovadora”, continua.

A proposta era que Ana fosse submetida ao tratamento com células CAR-T (ver perguntas e respostas na caixa), que consistia em retirar do seu sistema imunitário células T para depois as modificar em laboratório e instruí-las para atacar os agentes malignos. “Foi um dos melhores presentes que podia ter tido na minha vida”, repete, feliz. Embora com “cautela”, avançou para o tratamento “com toda a confiança”, e alguns meses depois era tempo de voltar a injetar as células alteradas.

“Pareceu-me uma eternidade. Reagi muito bem, tive sintomas secundários muito ligeiros”, recorda. A próxima reavaliação é em dezembro. “Quero acreditar que vai correr tudo bem e que a doença se vai manter silenciosa”, reitera.

Desde 2019, quando a terapia começou a ser aplicada em território nacional, já mais de 150 doentes foram tratados com ela, sobretudo para doenças oncológicas do sangue. Porém, assegura Fernando Leal da Costa, “estamos em presença de uma tecnologia que será cada vez mais usada no nosso país” e que pode ter aplicação em outras maleitas. “No fundo, esta solução permite-nos ‘educar’ as células da imunidade para fazer o que queremos que façam”, explica o diretor de Hematologia do IPO de Lisboa. Trata-se de um primeiro passo para a democratização da medicina de precisão, reconhece Henrique Lopes, diretor do NOVA Center for Global Health.

Ricardo Ferreira, 48 anos, descobriu em 2019 que tinha um linfoma difuso de grandes células B. O nome é complexo, mas era o que menos interessava a este operador de armazéns, que viu a sua vida abalada e o futuro em suspenso. “Fiz uma primeira quimioterapia e, algumas semanas depois, uma outra, mais agressiva. Entrava segunda-feira no hospital e saía à sexta-feira. Antes levava diariamente cinco ou seis litros de líquido nas veias”, partilha.

Foi um dos primeiros a ter acesso à terapia no IPO do Porto, em 2020, e garante que a sua confiança nos médicos era “total”. “Vi que nestes casos só 7% das pessoas que não reagem à químio é que escapam. Portanto, a expectativa era muito baixa”, explica. No entanto, o cenário negro que antecipava deu lugar ao alívio. “Hoje, quatro anos depois, tomo muito mais conta de mim”, remata.

Garantir a todos acesso à terapia

Um grupo alargado de peritos nacionais em saúde vai reunir-se várias vezes até ao início do próximo ano para refletir sobre os principais desafios do alargamento da terapia com células CAR-T a mais doentes em Portugal. O projeto Sharp, iniciativa do NOVA Center for Global Health, divide-se em três sessões estratégicas dedicadas aos temas dos modelos de financiamento, gestão da jornada do doente e diagnóstico. “Ambicionamos dar o nosso contributo ao país para a criação e proposta de soluções que permitam o acesso atempado e equitativo a todos os doentes elegíveis”, resume Henrique Lopes, diretor da instituição. Está previsto que em fevereiro o grupo de especialistas apresentará um relatório público com recomendações que permitam ao Serviço Nacional de Saúde aumentar a capacidade de resposta. “Dado que é uma tecnologia de vanguarda, o país tem de se capacitar a todos os níveis”, acrescenta.


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O que são as células CAR-T?

Representam um exemplo do que é a medicina de precisão, em que a terapia é personalizada e ajustada à realidade de cada pessoa para potenciar os seus benefícios. Ao doente são retiradas células T e enviadas para laboratório, onde são manipuladas e ‘instruídas’ para combater células cancerígenas. Depois, as CAR-T são devolvidas ao sistema imunitário do doente e atacam o alvo definido de forma mais eficaz.

Quais são as aplicações desta terapia?

Em Portugal, este tratamento está disponível desde 2019 para aplicação em doenças oncológicas do sangue, nomeadamente os linfomas. Em dezembro de 2022 este procedimento foi utilizado pela primeira vez no país em crianças com leucemia, num caso que foi seguido pelo IPO de Lisboa. “Nos próximos dois, três anos ou, no máximo, cinco anos será possível aplicar a outros tipos de cancro [sólidos] e doenças autoimunes”, afirma Fernando Leal da Costa, diretor do departamento de Hematologia daquela instituição. Entre as utilizações possíveis estão a diabetes tipo 1 e a lúpus. “Até já foi testado para doenças cardíacas”, aponta.

Quais são as vantagens em relação a outros tratamentos?

Atualmente, a terapia está a ser usada em doentes em fase avançada da doença e em casos em que já foram esgotadas outras opções. Leal da Costa explica que, em situações terminais, a taxa de sucesso é elevada. “40% vão ficar curados”, segundo os números atuais. Sem o tratamento, o também antigo ministro da Saúde diz que a taxa de sucesso seria de “1% ou 2%”. Por serem criadas a partir de células do doente, as CAR-T têm menos probabilidade de serem rejeitadas pelo sistema imunitário e, por isso, são mais eficazes.

Todos os doentes podem ter acesso?

Apesar de mais de 150 doentes terem já beneficiado da terapia com células CAR-T, o tratamento está sujeito a critérios restritos de elegibilidade e representa custos elevados para os cofres do Estado. Objetivo do grupo de reflexão Sharp (ver caixa) é precisamente alargar o alcance desta abordagem terapêutica a mais pessoas em todo o país.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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