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A construção perdeu o sex appeal. Agora quer recuperá-lo

“O Centro Cultural de Belém foi o último projeto que fiz em papel”, diz o arquiteto Manuel Salgado. Hoje são todos feitos digitalmente
“O Centro Cultural de Belém foi o último projeto que fiz em papel”, diz o arquiteto Manuel Salgado. Hoje são todos feitos digitalmente
Debate. O processo construtivo está cheio de ineficiências, que originam litígios e um desgaste que afasta os trabalhadores, atuais e futuros. Mas nunca foram precisos tantos técnicos qualificados como agora
A construção perdeu o sex appeal. Agora quer recuperá-lo

Ana Baptista

Jornalista

As intervenções da maior parte dos oradores que estiveram na conferência que a Transfor organizou esta semana deviam vir com um alerta para não entrar em pânico. Principalmente para quem não é do sector da construção. O que contaram nos três painéis de debate pinta um cenário “desgastante” e “ineficiente”, onde se lida com “técnicos pouco qualificados” nas Câmaras. Onde o “caos” que impera nas “poucas” obras públicas que existem é meio caminho para “dispendiosos” processos de litigância. Onde ainda “os honorários que se pagam aos projetistas são absolutamente ridículos” e o “formalismo, a desconfiança e o preço mínimo do Código dos Contratos Públicos (CCP) matam qualquer negócio” e comprometem a qualidade.

Em suma, um cenário que “afasta as pessoas”, diz o CEO da Transfor, Tiago Marto. Não só o público em geral, que pensa que “qualquer pessoa pode fazer uma obra”, acrescenta o administrador da HCI Construções, Rui Marques, mas acima de tudo os atuais e futuros trabalhadores, que preferem ir trabalhar para outros países ou para outras profissões. “Existe um problema muito grande de contratação. Na obra que acabámos de fazer, uma obra grande, de €100 milhões, tivemos quatro mil trabalhadores, 50% portugueses e 50% estrangeiros, de 45 nacionalidades diferentes”, conta Rui Marques.

“A profissão perdeu o sex appeal”, repara Jaime Quintas, fundador da Alphalink, uma empresa de gestão de projetos. E agora quer recuperá-lo. Porque existe algo de especial em “pegar num papel em branco e transformá-lo num edifício”, acrescenta.

As soluções apresentadas são vá­rias e começam por algo tão simples como “o diálogo entre todos os intervenientes”, sugere Tiago Marto. Mas também por ter algum otimismo em relação ao presente e ao futuro. “As coisas não estão bem, mas estão melhores do que há uns anos”, diz Nuno Costa, CEO do Quadrante, um grupo de arquitetura. Até porque agora há trabalho, algo que não havia em 2009 e 2010 e que obrigou Miguel Saraiva, arquiteto e CEO da Saraiva + Associados, a ir trabalhar para o estrangeiro.

Além disso, há mudanças a acontecer fruto do pacote Mais Habitação do anterior Governo, agora chamado Construir Portugal. É o caso do simplex urbanístico, que entrou em vigor a 4 de março deste ano e, no entender de Nuno Costa, “vai no bom caminho, porque reduz os prazos” de resposta aos pedidos de licenciamento, considerado um dos maiores problemas neste sector.

Mais soluções

Contudo, não basta a boa vontade e um conjunto de medidas para recuperar o que se perdeu. Há ainda “ineficiências” nos processos construtivos que podiam ser resolvidas com mudanças legislativas e maior estabilidade nas decisões políticas, repara Tiago Marto.

Alguns dos oradores presentes na conferência atiraram-se com unhas e dentes ao CCP. António Ramalho, ex-presidente da Infraestruturas de Portugal e do Novo Banco e que agora está na Touro Capital Partners, foi um deles. Para o gestor, “não há solução possível [para o sector] com o atual CCP”. Rui Marques também lhe chamou “uma aberração”. Mas Cristina Santos Silva, da CSS Advogados, diz que “o problema não é tanto o Código dos Contratos Públicos, mas sim a conciliação do regime jurídico com o regime de despesa pública”. Por exemplo, se se encontrar uma ponte romana numa obra, tem de se alterar o projeto e pedir para aumentar a despesa, mas o Estado depois não tem dinheiro para desvios de preço, e se a obra se atrasa e passa para o ano seguinte então é o caos, “porque é preciso uma assinatura conjunta” do ministério que contrata a obra e do ministério que dá o dinheiro, ou seja, o das Finanças.

NÚMEROS DO SECTOR

45

foi o número de nacionalidades que a HCI teve entre os 4 mil trabalhadores num projeto recente, no valor de €100 milhões


300

mil foi o número de trabalhadores que o sector da construção português perdeu em 20 anos para a reforma, para outros países ou para outras profissões


De facto, diz o arquiteto Manuel Salgado, “arqueologia e solos contaminados são dos piores problemas” que se podem encontrar numa obra. Por isso é que Cristina Santos Silva defende que devia haver geólogos a analisar os terrenos antes de os colocar a concurso.

Além disso, a legislação referente a estes casos não ajuda, repara Manuel Salgado. “Qualquer terreno próximo da costa é considerado solo contaminado. Isto é um absurdo.” Por isso é que, acrescenta, “o projeto deve ser um documento aberto para incluir o contributo dos construtores”. Porque, diz Nuno Costa, “cada obra é um protótipo” e trabalhando em conjunto é-se mais eficiente.

FRASES da conferência

“Houve alguns erros da banca e houve alguns exageros [...], a imagem do sector foi contaminada e os jovens não querem trabalhar na construção”

Fernando Santos
Ex-bastonário da Ordem dos Engenheiros


“O preço do projeto é mais barato que a tijoleira que entra na obra, 
e isso não é compatível com o que é exigido aos projetistas”

Miguel Saraiva
CEO da Saraiva + Associados


“Os baixos honorários têm a ver com o facto de o nosso sector ser altamente ineficiente”

Nuno Costa
CEO do Grupo Quadrante


“Temos 95% de obras privadas porque deixei de confiar no Estado. Fizemos três obras para a Parque Escolar e acabaram em tribunal”

Rui Marques
Administrador da HCI Construções


“Tivemos um projeto onde encontrámos terras contaminadas e teve de estar parado oito meses. Ainda estava no início e começou logo a litigância”

Tiago Marto
CEO do Grupo Transfor

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